sábado, 11 de janeiro de 2014

CORPOS CRUZADOS



autor: Jader Resende

    Maldita hora em que subi naquele pau de arara, é nisso que dá sonhar acordada. Foram duas semanas de dura viaje, uma grande lona cobria toda carroceria do caminhão, arriávamos as laterais para nos proteger da chuva ou vento. Em pouco tempo as crianças se ambientaram, sempre com a boca cheia de farinha, rapadura, cana, laranja e tudo que podiam alcançar ou davam a elas, rastejavam por baixo dos bancos esmiuçando tudo a procura de num sei o que? Eram as únicas no caminhão e todos redobravam os cuidados para não caírem. Às vezes vomitavam de tanto comer. Minhas orelhas ficavam vermelhas e a cara inchada de vergonha, não estava acostumada a ver tanta gente junta, só na festa da padroeira, mesmo assim por pouco tempo e devoção.  À noite parávamos na beira da estrada, todos se acomodavam como podiam nos bancos, e assoalho. O motorista abria embaixo da carroceria  uma caixa de madeira, a tampa formava uma mesa onde cozinhava feijão com carne seca e ali mesmo armava sua rede. De madrugada, ocupávamos os bancos de madeira atravessados na carroceria e voltávamos para a estrada. Éramos uma desconhecida família, sempre repartíamos o pouco que tínhamos, o mais leve mal estar logo era combatido por ervas aparecidas de algum embornal e o motorista parava para fazer chá no seu fogareiro. Vários destinos e um só rumo. No fim da estrada cada um seguira seu rumo sem destino. Não se falava do passado ou futuro,  um só corpo e só aquele momento importava,  como se estivéssemos escondendo o passado de vergonha e futuro de o medo. Em todas as cidades que parávamos, descia aquele monte de gente retraída dentro de si, visto como leprosos, evitavam chegar perto, existia sempre alguém cochichando e debochando dos condenando por fugir da caatinga calcinada, onde o sol nada deixa apodrecer, onde tão logo morre vira pedra. A seca empurrou à agente para aqueles poucos dias de pura união.

O arrependimento sempre acompanhou Marialva. Largaram a casinha de taipa sem porta e janela naquela terra esvaziada dentro do nada, e deste nada, sobreviviam. O fogão de lenha improvisado no terreiro, às panelas de barro cosido, era tudo que tinham. Ao nascer do sol caçavam animais no caminho para a cacimba, com sorte traziam na volta cobra, lagarto ou sarigê e um pouco de água, as dez já se tornava impossível caminhar sob o sol, à tardinha saiam pra caça ou voltavam à cacimba. Muitas vezes não conseguia pegar água por vários dias a espera que ela voltasse a brotar. Quase nunca se falavam ou nada tinham pra falar, sempre foi assim, não havia presente, passado, futuro. Os dias eram iguais. O sol estuporando tudo pela frente, sem uma nuvem no céu, somente pés de mandacarus e galhos secos, achava que as plantas cresciam sem folhas e depois morriam sem ela perceber.

Agora morava num apartamento com água, luz e conforto que nunca tinha visto, mas sentia falta de acordar antes do sol raia, meter os pés no chão, caminhar até a cacimba vendo o dia nascer, encontrar os visinhos que nem mesmo sabia onde moravam. Lá pelo menos não veria esse monte de coisas que não podiam ter, é tudo proibido, nem uma soneca de tarde existe, aqui ninguém se dá conta que gente come gente e gente é comida de gente.

Lá fora caia uma garoa fina, o frio entrava pelas frestas dos janelões misturado ao barulho dos carros que seguiam lentamente na avenida numa procissão interminável, buzinadas de desesperados motoristas, sirene de ambulâncias e viaturas da policia entravam e saiam pelo portão da casa quebrando a monotonia.

Passos apressados, choros engasgados, a opacidade de uma dor calada e o estalar abafados de portas e gavetas davam cadencia a tristeza impregnada no ar. Às flores dos azulejos iam até o teto numa sequência repetitiva, cansativa e enjoada. Em uma das salas estaria seu marido sem vida, frio como tudo ao redor. Nunca mais o ouviria protestar contra o governo, falar mal do esfomeado supermercado ou ficar revoltado com seu time que foi rebaixado. Funcionários passavam apressados em direção a saída. Por um instante pensou no jantar dos filhos que ficaram na casa da vizinha. À medida que a noite chegava os carros diminuíam, podia-se ouvir através da parede vozes e passos medidos e pausados. As viaturas e ambulâncias se amontoavam nos gramados daquela grande casa. É tão grande que se esqueceram de mim, não importa, não tenho pressa. Falava com seus pensamentos. Da janela podia ver o movimento das pessoas apressadas.

Do outro lado da sala uma mulher envelhecida pela vida, com o corpo curvado como se quisesse penetrar em si mesma, suas roupas demonstravam extrema pobreza. Pequena como era chamada permanecia de olhar firme no mármore raiado a seus pés, passeava por sua vida sem olhar pros lados. Não via Marialva, não tinha forças para conduzir o presente, às vezes mexia o corpo e despertava dentro de um pesadelo. Não sentia o frio da sala. O vestido de chita surrado, empalidecido e a blusa de crochê aos poucos se desmanchava sem perceber. O pensamento parecia ter pernas, corria aqui e ali numa velocidade alucinante, estava perdida num labirinto de problemas. Às vezes acreditava que iria colocar os filhos na escola e quem sabe até, comprar uma televisão pra assistir novelas.

Com o emprego do Severino a vida iria melhorar. Pensava nele com carinho, homem esforçado, aprendeu a ler, arranjava a pagina policial de jornal dormido pra se exibir lendo manchetes, sabia tudo que era de coisa da policia, ficava orgulhoso lendo pra gente. Prestou exame numa firma de segurança e foi aprovado, começou hoje cedo e já foi promovido defunto. Deus o tenha. No sertão um marmanjo forte e destemido sempre morre de emboscada. Depois do café, correu para vestir a farda nova e se mostrar, andou de um lado pro outro estufando o peito e pisando duro, dava pra ver que sentia os pés protestarem dentro do coturno novo.                                                                                   —Mulher! Estou bonito?  Vou tirar um retrato no lambe-lambe da praça e mandar pro nosso povo. Pequena, desta vez vamos tirar o pé da merda. Primeiro vamos morar na Vila das Belezas. Botar os meninos na escola prá não passar o que passamos. Foi pro quarto e voltou cabisbaixo dobrando a farda com todo cuidado, colocou peça por peça numa sacola, não podia andar fardado pela favela, seria morto e sua família expulsa.

Pequena tinha vontade de abraçá-lo, beijá-lo como na noite de São João quando se conheceram, pularam fogueira e trocaram juras de amor, mas não acreditava em nada. Depois que saíram da roça, sentiu o que é pobreza, descriminação e desumanidade, tinha tantas magoas que já não acreditava  em quase nada, estava fria e o Zé não se dava conta. Não sabia mais beijar ou abraçar, às vezes acontecia de se abraçarem quando fazia amor, mas era só prá se acomodarem melhor. Mesmo assim sentia-se bem com a felicidade do Zé. Era o que procuravam quando saíram do sertão. Talvez a vida não mudasse, mas pelo menos tirariam os filhos da rua.  O ano passou rápido desde que chegaram a São Paulo, a vida cheia de dificuldades ficou pior, uma barulheira dos pecados, o ar abafado cheirando a coisa ruim e esse montão de gente querendo tomar o que agente não tem, um querendo engolir o outro, pensava com raiva. Na roça, o silencio da noite era iluminado pelas estrelas e vigiado por São Jorge na lua. Desde que chegou nem o céu via. Lembrava do caçula que deram a Nego D’água pra batizar, sabiam de sua vida, mas ele gostava de crianças, vivia dizendo. —Dona Pequena, o próximo branquinho eu quero batizar e assim foi. Teve festinha com bolo e batuque a noite toda, agora estava preso por assalto à mão armada. De vez em quando levavam o menino pra ele ver e ele dizia

-—Dona Pequena, meu afilhado não ta precisando de nada? Eu estou preso, mas não estou morto, ainda mando no morro, já dei ordem pro meu pessoal levar dinheiro todo mês pra educar esse bacuri e a senhora não aceitou. Sou padrinho, pela lei de Deus ele é meu protegido, vocês deviam aceitar esse dinheiro. Quero ver esse moleque doutor advogado pra não andar de trabuco na mão, até preso agente tem que dormir de olho aberto, botar a turma no batente, pagar a organização, dar na mão pra esse e aquele, sem besta com o advogado que leva o seu todo mês. A labuta dobra. Se dormir de olho fechado amanhece defunto.

Logo que chegaram à favela, duas mulheres acompanhadas pelo líder comunitário subiram o morro, iam de casa em casa perguntando:

 —Quantos filhos a senhora têm?

 —Dois, respondeu tentando esconder o rasgo no vestido que deixava aparecer suas coxas mal tratadas, mas bonitas.

Sem que decidisse nada, marcaram pra comparecer no outro dia ao hospital, disseram que iria fazer um tal controle de alguma coisa que não entendia, dariam alimentos pra família, uma vez por mês durante um ano. As vizinhas falaram de uma operação pra pessoa não ter filho. É certo que tinha uma vida miserável, mas rezava muito e confiava em Deus, mas também não queria ter mais filhos pra virar bandidos.

Dias depois estava de volta do hospital com remédios e caixas de comidas, não resolveriam a vida, mas ajudaria a viver mais um pouco.

Silenciosamente uma porta abre e um homem magro de cavanhaque e bigode fino entrou na sala e perguntou:

Seu nome moça? Virou-se e lá estava um olhar duro e voz sem vida, o cabelo caído na testa dava-lhe um jeito desprotegido atrás daquela avental branco em seu corpo.

—Meu? Respondeu meio sonâmbula.

—Sim, senhora.

—Maria das Dores Ferreia..

—E da senhora? Virou-se para Marialva.

—Marialva dos Reis Silva.

—Por favor, esperem um minuto. Saiu com passos lentos e silenciosos.

Marialva e Pequena se olharam timidamente. Marialva atravessa a sala e senta-se ao lado de pequena e pergunta.

—Era seu parente?

—Sim meu marido.

—Também perdi o meu hoje de manha. Suspirou vagando o olhar pela sala.

—Tinha só vinte e cinco anos. Marialva falava como se não houvesse ninguém na sala.

— Quando chegamos à cidade foi trabalhar de entregador, terminou o primário e o ginásio em menos de um ano num tal de supletivo. 

Passou por diversos empregos sempre ganhando pouco, junto com o pouco de Marialva deram uma pequena entrada e vinte anos de prestações num pequeno apartamento. Desempregado a mais de um ano e processo de despejo por quase um ano de atraso nas prestações.

—Desde ontem notei algo estranho. Pela manha estava eufórico, olhar tenso e penetrante, não resmungou contra políticos e do seu desemprego, como sempre fazia na hora do café. Antes de sair foi até o quarto dos meninos, levou mais tempo do que de costume olhando os garotos dormir.

Da porta do quarto pensava. Prometo que arranjo um bom dinheiro, largo está porcaria de apartamento financiado e a gente volta pra nossa terrinha compramos uma fazendinha e vou plantar pra comer. Lá ninguém vai pisar na gente como aqui.

Vestiu sua melhor roupa, saiu dizendo que ia apresentar-se para um novo emprego.

A rua ainda molhada pela garoa da madrugada deixava o ar úmido e fresco, pessoas andando apressadas a caminho do trabalho, a fumaça dos carros começavam a deixar um rastro pesado e criminoso no ar. Assim eram todos os dias, mas para ele  estava diferente, não conseguia medir as conseqüências ou ver o futuro, era como se caminhasse pra dentro do nada, sentia-se vazio mas determinado.

Pegou o ônibus e foi para o outro lado da cidade, não podia ser reconhecido. Com um revolver na cintura sentia-se superior, gostava desta sensação de poder que a arma lhe dava. Da janela do ônibus viu o banco passar, seguiu por mais três paradas e desceu, voltou caminhando lentamente. Parou em um bar pediu um rabo de galo e ficou olhando o banco do outro lado da rua, bebeu a cachaça e ficou imaginando. Vou agir rápido, talvez não dê tempo de levar muito dinheiro, pensou.

Já ia saindo quando o garçom grita:

Hei moço, o senhor esqueceu-se de pagar. Falou meio sem jeito, ao ver o olhar duro e estranho daquele homem com as mãos no bolso do paletó.

Deu sua única nota e não esperou o troco.

—Só dá maluco, primeiro sai sem pagar, depois deixa o troço. Retrucou o garçom.

Afastou-se do bar e voltou pelo outro lado em direção ao Banco, andava apressado, subiu de uma só vez os três degraus. Abriu a porta de vidro e parou. Suas pernas não mais o obedeciam. Tremia todo o corpo, a mão suada no bolso do paletó apertava o revolver, quando surgiu em sua frente uma moca perguntando.

—Posso ajudar?

Assustado e possuído pelo desespero gritou:

—Isso é um Assalto, todo mundo quietinho, só quero o dinheiro do banco. Zeferino não conseguia pensar. Rapidamente sacou da arma.

Frente a frente, dois tiros e um só estampido. Cambalearam. Novos tiros foram dados, caídos, ainda trocaram tiros a esmo.

Zeferino pensou na mulher, nas crianças, viveu toda vida naquele instante, ainda com a arma apontada pro assaltante praguejou:

—Desgraçado, me acertou logo no primeiro dia.

Zé, ainda lúcido arrasta-se pelo chão na tentativa de continuar, tentou passar sobre o corpo de Zeferino atravessado no caminho e não conseguiu. Já sentindo que a morte o espreitava amaldiçoa.

—Guarda de merda, até morto o sacana me atrapalha.

A farda nova de Zeferino manchada de sangue seu e do Zé não mais brilhava como de manha.

Logo uma multidão se junta ao redor dos corpos, nada falavam, se limitavam a levar sua parcela de culpa para casa diante da brutalidade e indiferença da sociedade.

A porta se abriu, o homem de bigode fino chamou as duas senhoras:

—Por favor, queiram me acompanhar. Passaram por diversas portas e num grande salão encontraram duas macas de ferro, ali estavam os Zes de terras distante que morrem cedo.

Marialva e Pequena olharam os corpos sem nenhuma expressão.

—Por favor, senhoras, queiram confirmar a morte dos seus maridos e assinar esta declaração e esperar a liberação dos corpos.

Abraçaram-se e um choro abafado sai de dentro de suas almas.

Com a morte do Zé, o apartamento passa a pertencer à viúva sem nenhuma divida ou prestação, a firma onde Zeferino começou a trabalhar pagou um seguro para pequena. Juntas resolveram vender o apartamento e compraram uma casa na vila das Belezas com três quartos, um para os meninos, outro para as meninas e um para elas. Trabalhavam como diaristas e lavavam roupas para fora e no frio da noite esquentavam-se debaixo de um cobertor, trocando segredos e se amando ternamente.

—Depois de amanha faz um ano lembra-se? A voz de Pequena ressoa com a força da paixão no silencio da noite, ouvi-se o barulho da chuva batendo nas telhas de barro cozido. Sonharam com aquela casa, um pequeno jardim de margaridas e bem-me-quer, um quintal nos fundos onde pudesse estender roupa,  as crianças brincarem e sentir a terra em contato com os pés.

—Não fique encafifando coisas. Amanha encomendamos uma missa e festejamos nosso primeiro aniversário na sexta.

—Nosso primeiro encontro foi no mesmo dia, ainda fico aturdida só de pensar. Recordou os ladrilhos, o ar pesado e úmido, os corpos sobre as duas mesas cobertos de sangue. Pareciam indefesos, indiferentes, pela primeira vez na vida sentia-me sem saída.

—Eu sei, devemos prestar homenagem, e comemorar com alegria nosso encontro. Falou com tristeza.

—O que importa é que estamos bem. Assistiremos a missa e na sexta ficaremos até tarde comemorando nosso primeiro encontro.

—Será que não faz mal comemorar? Eram nossos maridos, trabalhadores, gostavam das crianças, só não deram sorte.

—Não fique aperreada, eles estão mortos. Foi à vontade de Deus, estamos educando nossos filhos, temos esta casa, trabalhamos duro, é certo, mas estamos felizes. Marialva procurava não se levar pelas lembranças tristes.

—Morreram na mesma hora  e lugar. Deu até no jornal: “Assaltante e segurança morrem duelando”.

—Foi esse destino que nos deu vida nova. Isto nós devemos a eles. Não se esqueça de que no sertão eles também estariam mortos e nós, viúvas,  nem enterro teriam. As viúvas da seca que passam á vida esperando que seus homens voltem, criam os filhos sozinha e Deus, sem chance de encontrar outro amor, entra dia e sai dia e nada, nunca mais dão noticias. E elas só labutanda e se masturbando abafado embaixo do cobertor pra ninguém ouvir.

—Conheci muitas, minha mãe era uma.

—Eu sei, a minha também. A labuta era grande, elas tinham garra, participavam de tudo, nas festas da padroeira eram pura alegria, quando alguém morria, ficavam tristes, até choravam.  Na caatinga enterro de gente um pouco mais graúda é coisa festiva, lá estavam elas, tinha velório a noite toda com viola, café, cuscuz e inhame cosido, muita ladainhas e excelência com cantadores e sabedores de versos cantavam suas rimas encomendando a alma do defunto que muitos nem conhecia, estas mulheres sofridas e calejadas sempre se lembravam dos maridos e resmungavam pelos cantos. —Os desavergonhados pelo menos devem estar vivos em algum lugar desse mundo de Deus.  Os homens que ficam morrem antes dos trinta, mas ninguém mata ninguém sem ser inimigo. Aqui, colocam gente pra matar gente sem mesmo se conhecerem.

—É triste, eles nem trinta anos tinham. O enterro nem parecia ser de gente, só eu, você e as crianças.  Não choramos um pingo de lagrimas, ninguém para encomendar a alma, não deu tempo de fazer uma reza, nem alça tinha o caixão, se agente não fosse ao enterro nenhuma diferença faria, seriam jogados, como foram, naquele palmo de terra numerado, ninguém ao seu redor tinha nome, só numero.  Diziam que ali enterravam os indigentes, fazer o que?Além de retirante, pobre era também indigente e eu nem sabia que agente era tanto assim.

—Eu lembro, foi preciso Nego D’água de dentro de a prisão dar ordens ao advogado pra fazer alguma coisa, só dessa forma conseguimos colocar nomes e flores de plástico.

—Chega pra cá e deixa a tristeza prá lá, minha pequena. Como uma gata manhosa procura o calor do corpo de Marialva e beija seu rosto carinhosamente.

—Vamos falar de outras coisas, beber um pouco de conhaque e olhar em frente.  Amanha é feriado e podemos dormir até tarde.

—A cachola esta fervilhando de coisas, parece ter sido ontem. A vida tem dessas coisas, se eles não morressem nunca nos conheceríamos.

Marialva levanta-se vai à cozinha e volta com uma garrafa e diz.

—Quando senti nossos caminhos cruzarem, um clarão cegou-me por um instante, pensei que fosse raiva estivesse tentando culpá-la, virei-me de costa e continuei com sua imagem em meu pensamento, sentia um apertume no coração que você nem imagina. Sentia-me só, desamparada numa cidade grande, demorou um pouco pra me ver em você, éramos iguais naquele momento. Mesmo sem saber, sua presença naquele banco me provocava. Seu vestido um pouco rasgado mostrava suas coxas, um frio corria meu corpo quando olhava suas pernas.

—Aquilo era hora de secar minhas coxas. Oxente! Sorriu fingindo estar bronqueada. Só pensava em voltar pro Sertão, criar meus filhos queria ver o rio Doce outra vez, ainda me lembro de suas águas.  Nunca tinha visto tanta água na vida, haja Deus de tamanha beleza. O rio descia mancinho na mesma direção do pau de arara, dava a impressão que nos seguia ou indicava o caminho pra terra prometida, seguia dando voltas sem sentido como se quisesse banhar com suas águas toda a sua volta sem perder o rumo do mar.  Algumas vezes se distanciava da estrada me deixava aflita. Qualquer morrinho o deixava lá embaixo fino e frágil de dar dó. Quando nos desviávamos ou contornávamos morros em direção oposta, ficava ansiosa para vê-lo, surgia calmo, sereno seguindo indiferente. Na entrada das cidades o perdia de vista, ficava ansiosa em seguir viajem para vê-lo. Aproveitávamos para ir ao banheiro, encher vasilhames de água e ficar dentro do caminhão com medo dos olhares agressivos do povo.  Não tirava o rio do pensamento, numa única vez quando saímos de uma cidade sem menos esperar atravessamos uma ponte, passamos sobre ele e esta foi a ultima vez que o vi. Gostaria de tê-lo seguido até o mar.

—Também não via outro jeito, ia voltar pra minha terra. Estamos bem aqui mesmo, não é? Marialva deu uma entonação meiga e carinhosa a pergunta, passando a mão pelos seus cabelos. Um dia, quando as crianças forem donas dos seus narizes vamos conhecer o mar. Como você ganhou este apelido que eu gosto tanto.

—Eu sempre fui miúda, ele foi meu primeiro namorado e só me chamava de Pequena e logo, logo, todo mundo passou a me chamar assim. Eu gosto de te chamar de alva.

—Você me chama com tanto jeito. Conversavam na cama sempre que podiam dormir até tarde. Bebiam lentamente, o calor do conhaque aos poucos tomava conta do ambiente. Seus corpos vão se tocando suavemente.

—Alva, eu nunca pensei em tocar no corpo de outra mulher.

—Nem eu. Não sei como aconteceu. Acho que estávamos desamparadas e o melhor que fizemos foi nos unir para sobreviver nesta cidade.

—Acho que o destino nos deu esta oportunidade e a ela nos agarramos. ——Não acredito que estivéssemos num desamparo desesperador, São Paulo é fria, chega a ser repulsiva, mas tenho certeza que encontraríamos uma forma de sobrevivência. Alem do mais eu gosto daqui, gosto de passear no Ibirapuera, na praça da republica e aqui é bem melhor do lugar onde nasci.

—Quer mais conhaque? Vou fritar um pouco de tira-gosto pra nós, Sem esperar resposta levantou-se, pouco depois regressou com um prato de torresmo e se recostou à cabeceira da cama.

—Adorei encontrar a minha Pequena.

—Naquela primeira noite que fizemos amor, estava assustada, não sabia o que fazer ou como fazer, fechei os olhos e procurei não pensar em nada e quanto menos eu pensava, mais eu sentia sua pele quente ir aos poucos tomando conta do meu corpo, naquele momento não conseguia controlar meus movimentos, estava fixada em seu calor.Seus movimentos tinham vontade própria estavam me levaram à loucura, suas mãos iam dos meus lábios a minha chota, seus carinhos ao me tocar sempre me deixam tomada de desejos  

 Beijou Pequena, foi roçando os lábios no seu rosto, mordiscado sua carne lisa, enfiou a língua em seu ouvido e sussurrou: Eu ti amo.

Pequena deu um grito surdo e suave. Gemeu prazerosamente e disse: Estou arrepiada e molhadinha. Seus olhares se cruzam, os lábios se unem e seus corpos se enroscam ao carinho do amor.

O dia amanhecia preguiçosamente, a luz penetrava no quarto e suavemente sombras e linhas desenhavam formas perdidas nos sonho daquela noite de amor.

—Marialva. Às vezes sinto falta do meu homem.

—Eu também, mas logo passa. Tem coisas que ainda mexem comigo. Ele era meio bruto, não tinha esse carinho demorado que atravessa a noite, mas ainda lembro-me dos seus incompreensíveis sons na hora do gozo, lembro-me de todos eles, quando me penetrava sua carne dura me empurrando por dentro, aquele entra e sai avexado provocava bolhas de ar, seu corpo pesado batendo forte no meu, cada detalhe tenha seu som, conhecia todos eles, antes, durante e depois, os pés da cama arranhando o cimento, as molas do colchão cada uma com seu jeito de protestar, o ritmo de sua respiração muitas vezes se misturavam ao meu e fazíamos um só barulho. —Você não se zanga quando falo assim, não é?

—Não me zango, gosto de ouvir você falar. Nunca prestei atenção em som algum, hora nenhuma. Fizeram silencio, Voltou a falar num tom triste e pausado.

—Às vezes ficava na cozinha perdida, contando os ladrilhos das paredes sem interesse em saber o total, costumava estar presente sentado numa cadeira perdido em seus pensamentos sem me ver, ficava horas assim, sem nada acontecer. Acho que nos acostumamos com nossas ausências. Eu pelo menos tentava estar presente e os ladrilhos me seguravam quando tentava escapulir, aquele imenso branco, o montão de quadradinho que sempre se misturavam, me obrigando a começar a contar outra vez, uma conta sem fim. Sempre misturava com a noite em que o conheci, ele chegou de mancinho, nos olhamos acanhados, bastou o olhar para saber que estávamos namorando, eu nem dormi naquela noite. Novamente voltava a contar os azulejos. As crianças inquietas e insatisfeitas brincavam pela casa percebendo mas sem entender, quando saia pra comprar na feira era como se não existisse, me sentia transparente. Com você eu me sinto viva a todo instante, no trabalho sinto você ao meu lado. É amor que sinto por você. Sinto-me gente de carne osso e desejos.

—Também te amo muito, e penso em você o tempo todo. Beijam-se suavemente.

— Já vi mulheres de mãos dadas até mesmo se beijando, dava pra notar quem tinha pose de homem e quem tinha pose de mulher, nós não somos assim. Somos diferentes em tudo. Será que não temos coragem de assumir diante de todos?

—Se for preciso eu pego na sua mão em qualquer lugar.  Não devemos nos preocupar. Vamos viver do nosso jeito.  Tudo tem sua hora, deve acontecer naturalmente, acho que no momento temos um cantinho nosso, estamos criando nossos filhos e eles já sentiram o nosso amor, e nem foi preciso dizer nada, simplesmente aconteceu.

—Devemos ter cuidado, não sabemos o que podem pensar. Tenho medo que alguma coisa possa mudar nossas vidas. As crianças estão pequenas e percebem com a pureza da alma. Aos poucos, inevitavelmente vão sento contaminadas pelo preconceito, não devemos deixar que façam de nós o que fizeram com nossos finados maridos.

—Não se preocupe, resolveremos um problema de cada vez.  Seria bom se pudéssemos nos casar de papel passado, já pensou, agente no altar sermos unidas pelas palavras de Deus.

—Mas podemos ter a palavra de Deus em qualquer religião ou mesmo na frente de um Juiz de Direito e isso não é possível, portanto vamos deixar o barco seguir as correntezas do Rio Doce rumo ao mar.

—Parece até sina, tudo que é de gente segue o rio em direção ao mar, e vem parar em São Paulo, começo a achar que eles dizem isso pra deixar aquela penca de filhos e arranjar outro amor nesta terra que mais parece um arraial nordestino.

 —Pode até ser. Agora, vamos relaxar.

—Quando vou fazer limpeza, ouço dizerem que isso é uma pouca vergonha, que estão assim porque não arrumam homem.  

—Você já teve seu homem, tem seus filhos e eu também. Falam assim porque não conhecem nossas vidas. O destino nos uniu, não tivemos vida fácil nem agora tão pouco, nos descobrimos num momento muito especial, o que nos uniu mais ainda. A paixão que sentimos não vale nada?

—Puxa você fala bonito que só vendo. 

— Não se aperrei. Coloca sua cabeça no meu ombro quero te fazer um agradinho. Uma suave harmonia flutua em meio a cheiro de conhaque e seus corpos sedentos de prazer, a sensualidade surgia vigorosa em seus corpos com a força de animais adormecidos, seus olhos cintilavam puro desejos, faiscando chamas coloridas da paixão.

                Suas mãos lentamente acariciam seus corpos, explorando íntimos segredos do amor. Trançam suas pernas, coxas coladas nas coxas detonam o ritmo do amor, ardentemente seus lábios se unem num beijo lambuzado. De seus corpos raios coloridos ofuscam a claridade da manhã.

Como se o mundo pudesse esperar, e fossem donas do tempo, suavemente se acariciam em seus mais íntimos e profundos prazeres, explorando cada parte do corpo como se o meio fosse um interminável fim.  As belas damas do baralho fundem suas fendas sobre seus rostos, seus olhos clareavam como focos de luz prateada suas xotas molhadas. Seus corpos unem-se em um só, suas línguas percorrem em câmera lenta desde a racha de suas bundas ao coração de suas xotas, sugando fluidos leitosos, beirando a explosão de chamas multicores da volúpia ardente, desdobrando-se em gozos redobrado.

Fecharam os olhos e sentiram no rosto suas mornas e úmidas contrações deixando no ar o mistério do aroma saído de suas flores de carne desabrochadas no calor da manha. Dormiram até tarde exprimindo nos gestos e formas inconscientes a  pura  forma do amor.

Autor: Jader Resende

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