quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

A cultura popular urbana


 

buscado no Pablo Ortellado


Luciana Lima
Pablo Ortellado


No Brasil, as manifestações culturais tradicionais conquistaram alguma respeitabilidade – são vistas como os elementos da cultura popular que compõem a identidade profunda da nação, ecoando a visão romântica de uma cultura pura, autêntica e comunitária. O mesmo não se pode dizer de manifestações populares urbanas como o sertanejo e o funk que ainda são vistas como expressões culturais simplórias, primitivas e inautênticas.
Há basicamente duas formas pelas quais a cultura popular tem conseguido conquistar legitimidade no discurso dominante: quando se apresentou como a identidade cultural da comunidade ou quando adquiriu sofisticação de linguagem (por desenvolvimento próprio ou por fusão com a alta cultura) e foi incorporada no repertório cultural consagrado. Fora destes casos, a cultura popular – sobretudo a urbana – foi geralmente considerada grosseira, sem sofisticação e imposta pela indústria cultural.
Essas características se evidenciariam pelo fato destas expressões culturais serem imediatas – isto é, por serem apreciadas mais pelas suas características sensoriais diretas (o ritmo dançante, a aparência plástica agradável) do que pelo seu caráter expressivo em diálogo com o desenvolvimento da linguagem. Como seriam imediatas, isto é, não requereriam repertório simbólico prévio para serem apreciadas, elas seriam simplórias e grosseiras. E como se expressam pelas indústrias culturais (ou pelo menos incorporam elementos simbólicos destas indústrias) elas seriam populares num sentido inautêntico, já que seriam manufaturadas e depois impostas – em outras palavras, seriam consumidas pelo povo, mas não seriam expressão autêntica dele, mesmo quando os artistas fossem originários das classes populares.
No entanto, quando analisados sem preconceito de classe, os gêneros populares urbanos aparecem não como vulgares produtos sensoriais impostos pela indústria, mas como o resultado de uma história social e simbólica que explica sua ampla aceitação e difusão.
A música sertaneja, por exemplo, é muitas vezes vista como uma degradação da música caipira de raiz fomentada por uma indústria cultural que a descaracterizou ao fundi-la com elementos comerciais da música country americana. No entanto, as origens e desenvolvimento simbólico da música sertaneja apontam para um gênero musical que expressa os valores e o modo de vida dos migrantes rurais estabelecidos nas cidades. O formato de duplas, normalmente de irmãos, que cantam em dois tons, remete aos padrões migratórios nos quais irmãos vão para as cidades para se estabelecer e preparar a vinda do resto da família. A idealização da vida no campo, assim como o amor sofrido tematizado nas canções são característicos da separação geográfica dos amantes e da saudade da terra de origem – já a intensidade dos sentimentos parece ser uma manifestação reativa ao modo de vida urbano que expressa contidamente as emoções. Essas e outras características que estão ligadas à história social dos trabalhadores migrantes do campo se impõem a incorporações de temas e estruturas musicais importadas do country americano que são sempre ressignificadas à luz da realidade social brasileira. A música sertaneja é, assim, uma expressão que tem tanto uma ordem simbólica própria, como claras raízes no contexto social no qual e para o qual foi produzida.
Assim como o sertanejo, o funk carioca também foi considerado uma imposição da indústria cultural americana que teria substituído manifestações musicais já enraizadas no contexto urbano, como o samba, por uma música empobrecida, repetitiva e estrangeira. Embora difundido, este discurso não encontra apoio na história, que é marcada por um processo ativo de apropriação e ressignificação do funk americano pelas classes populares do Rio. Durante vinte anos, esse processo de apropriação, com a criação e expansão dos bailes funk nos subúrbios e morros não encontrou qualquer respaldo da indústria fonográfica ou dos meios de comunicação. A expansão do funk no Rio parece motivada pela identificação com o modo pelo qual o funk americano, nas suas origens, havia afirmado a cultura negra. No entanto, o funk carioca aos poucos modificou o gênero, adequando-o à realidade local: incorporando, por exemplo, a temática da violência do tráfico, desenvolvendo um modo próprio de cantar e introduzindo as coreografias sensuais coletivas (em oposição ao break) e o modo de se vestir dos surfistas (em oposição ao modo de vestir urbano dos B-boys americanos). O resultado deste longo processo de apropriação e modificação é um gênero que mantêm vínculos originários com a cultura negra americana mas se tornou uma expressão particular das classes populares cariocas. Quando o funk foi, nos anos 1990, incorporado pela indústria cultural e difundido pelos meios de comunicação ele já havia se estabelecido como um fenômeno autêntico da cultura popular urbana. A adoção do funk pela indústria cultural foi, assim, antes resultado do que motivo da sua ampla difusão.
O sertanejo e o funk, assim como outros gêneros populares urbanos, têm organizações simbólicas próprias que são expressão dos processos sociais que lhes são subjacentes (que incluem, mas não se limitam à mediação econômica da indústria cultural). A ideia de que este tipo de manifestação é uma fabricação arbitrária imposta pela indústria a comunidades passivas não encontra respaldo na análise do seu desenvolvimento histórico. A visão de que as classes populares urbanas são desprovidas de cultura é, no fundo, fruto do entendimento de que a cultura se resume ao sofisticado processo de criação simbólica das classes dominantes ou ao repositório simbólico do nosso passado tradicional.
As manifestações populares urbanas expressam tão autenticamente a realidade social das camadas populares quanto a cultura consagrada expressa a realidade social dos segmentos dominantes. Por isso, cabe ao estado, por meio das políticas culturais, reconhecer, acolher e apoiar essas manifestações que dão sentido e expressam o modo de vida dos trabalhadores urbanos, da mesma maneira e com a mesmo respeito com que, tradicionalmente, tem apoiado a cultura consagrada. 

Algumas referências bibliográficas:
Dent, A. River of tears: country music, memory and modernity in Brazil. Durham: Duke University Press, 2009.
Viana, H. O mundo funk carioca. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.



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