sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Eu e a ditadura militar: os dias em que não fui herói

 buscado no Amálgama



Três lembranças vieram incomodar minha velha e boa consciência de opositor ao regime dos generais.



1.

Conversas com um velho amigo e professor da Universidade Federal de Sergipe, Afonso Nascimento, entusiasta da ideia de Comissões da Verdade em nível estadual (nas quais não acredito, vou logo dizendo), têm revirado minha memória e feito virem à tona acontecimentos do tempo em que estudávamos Direito na velha e saudosa Faculdade na Rua da Frente em Aracaju, no início dos anos 70 – apogeu da ditadura militar. Três acontecimentos especialmente, dos quais nem me lembrava mais (esquecimento que certamente Freud explica…), vieram incomodar minha velha e boa consciência de opositor ao regime dos generais. Começo a relatar o primeiro deles.
Antes, porém, um pequeno parêntese para dizer que minha descrença – e até oposição – a essas Comissões que querem instalar em tudo que é lugar, até nas próprias Universidades, tem a ver com essas lembranças. Vejam! O regime militar brasileiro foi o mais longo entre aqueles que se instalaram no chamado Cone Sul naquela época. Iniciado em 1964 e radicalizado em 1968, durou pelo menos até o governo de Figueiredo, que assumiu o poder em 1979 já sem os poderes excepcionais do AI-5, revogado por Geisel. Temos então, calculando por baixo, quinze anos de ditadura. Foi um período em que, apesar de submetida a rígidos controles, a atividade política não desapareceu, as instituições da democracia liberal mal ou bem (mais mal que bem, é verdade) funcionavam, e a classe média brasileira ascendeu ao céu do consumo. O que quero dizer com isso é que um regime tão longo não se sustenta no vácuo; que ele, para durar tanto, precisa contar com a cumplicidade da sociedade sobre a qual exerce seu poder exorbitante, mas da qual, em retorno, é merecedor de acomodação, para dizer o mínimo. Tal acomodação é um gradiente: vai do servilismo puro e simples a pequenas atitudes de pusilanimidade, como a que vou relatar, para minha vergonha, quase quarenta anos depois.
Corria o ano de 1973 e houve uma excursão de ônibus (hoje seria de avião) a três estados brasileiros que, leitores do Pasquim, conhecíamos por Sul Maravilha: Paraná, São Paulo e Rio de Janeiro. Teoricamente, íamos conhecer experiências presidiárias inovadoras nesses estados. Transporte pago, hospedagem paga etc. Tudo lero-lero. Pessoalmente, não me lembro de ter ido a nenhuma prisão-modelo. De minha parte pelo menos, simplesmente queria conhecer o frio de Curitiba, a garoa do Vale do Anhangabaú e, para deleite final, a Cidade Maravilhosa. Quem podia, se inscreveu para a excursão.
Entre os inscritos, havia um certo João Ferreira Lima – que chamávamos pelas costas de João-Papa-Doce, apelido cuja procedência não sei até hoje. Pouco importa. Importa é que João Ferreira era esquerdista “das antigas”, um daqueles que na época do secundário tinham se envolvido em atividades então chamadas de subversivas, e o seu nome foi vetado pelo assessor de segurança e informações da UFS, um tipo mirrado de nome Hélio Leão (do qual falarei num outro momento). Ele, João Ferreira, não poderia fazer parte da excursão. Um colega nosso, e barrado! E o que fizemos? Dissemos todos que isso era um absurdo, uma injustiça etc., mas pusemos todos a viola de Geraldo Vandré no saco e fomos. Ninguém fez greve de fome, ninguém fez ato público de protesto, ninguém pichou qualquer parede em apoio a João-Papa-Doce. Enfim, para não ser muito exigente, ninguém mandou sequer tirar o nome da lista de felizardos. Fomos!
Fomos, nos divertimos e voltamos. Estávamos e continuamos todos felizes. Somos todos democratas e alguns de nós querem ajustar contas com o passado. Mas acho que muita gente não se lembra de muita coisa…

2.

Agora relato um comportamento menos grave. Aliás, pensando bem, não há nele nada de reprovável moralmente falando, pois agi sob coação pelo menos psicológica, como verão meus cinco leitores. Mas, de todo jeito, não foi um comportamento de herói. E como hoje em dia vejo todo mundo ostentando tal qualidade (pois é fácil ser herói sob a democracia…), lembro o “Poema em Linha Reta” de Fernando Pessoa e venho, sem bater no peito, dizer que eu, “que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas / eu verifico que [...] quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado para fora da possibilidade do soco”.
Corria, como da outra vez, o ano de 1973. Alguns colegas mais afoitos tiveram a ideia de fundar um semanário. Um jornal de verdade, com impressão em gráfica e venda em bancas. Queríamos ser satíricos e críticos do regime. O modelo, obviamente, era o Pasquim, e escolheu-se como nome O Rekado – assim mesmo, com “k”. Como eu era de esquerda e posava de intelectual (ainda lembro de mim ostentando sob o braço o Ulisses de James Joyce, que lia aos engulhos), fui convidado a participar do empreendimento. E como participei! Apesar das dificuldades de toda ordem que afetam publicações desse tipo, conseguimos pôr nas bancas oito números!
Pulo muitas peripécias e chego ao que interessa: o nono número, antes de sair às ruas, foi apreendido na própria gráfica por agentes da Polícia Federal, e foi instaurado um inquérito contra nós – provavelmente enquadrados como perigosos subversivos agindo sob as ordens de Moscou. Eu não estava lá no momento da apreensão, e não lembro se algum colega foi detido. Mas algum tempo depois chegou minha vez de me explicar junto às autoridades que cuidavam da “Segurança com Desenvolvimento”, como dizia um dos slogans da época. Estava na varanda da minha casa lendo O Exorcista de William Peter Blatty, best-seller à época, quando um policial chegou com a intimação para que eu fosse depor. Nada disse aos familiares, para não assustá-los. Mas no dia designado deixei os amigos de sobreaviso (caso não reaparecesse…) e fui.
Não! Não! Não orem nem tenham pena de mim. Fui bem tratado. O “devido processo legal” foi rigorosamente respeitado (é verdade que não lembro se chegaram a me oferecer cafezinho), e do interrogatório lembro apenas uma pergunta idiota e descabida do delegado, que respondi com a cara mais séria e aliviada do mundo. Ele queria saber minha opinião sobre o presidente Médici! Disse que o admirava, que ele tinha devolvido aos brasileiros o orgulho de ser brasileiros, e que votaria nele em caso de eleição para presidente.
Não riam. Tenham apenas comiseração por um jovem com medo numa dependência policial, dizendo coisas que dele eram esperadas para se sentir livre e poder voltar à varanda da casa materna, onde o esperava o livro de Blatty e uma família ignorante do medo que ele tinha sentido naquela manhã. Nunca mais tive notícias do destino do inquérito. Deve estar sendo comido pelos cupins em algum depósito, se não simplesmente jogaram fora tamanha besteira. Mas a verdade é que não tive a coragem de ser herói. Depois teve mais.

3.

Vivi outro evento sob o mesmo sentimento de medo – só que dessa vez experimentado não em dependências da polícia, mas nos corredores e salas da própria instituição onde estudava, a Universidade Federal de Sergipe. Digamos que foi um medo alcatifado. Mas foi.
Acho que era o ano de 1975, e os colegas queriam porque queriam que eu fosse o candidato “da esquerda” à presidência do diretório acadêmico. Terminei aceitando, obrigado por aquilo que um amigo, o ensaísta Fernando da Mota Lima, chama de “tirania dos afetos”. Mas aceitei a missão sem nenhum entusiasmo, porque nunca gostei – como continuo não gostando – da atividade política. Estou falando, obviamente, da política no sentido eleitoral do termo, um terreno viscoso em que qualquer um que ele adentre tem de deixar fora as veleidades de autenticidade – como Dante dizia a propósito da esperança que era preciso deixar do lado de fora quando se entrava no inferno. Enfim, passemos. Já com a campanha em curso, eis que sou um dia convocado a comparecer à Assessoria de Segurança e Informações da UFS, quando conheci o senhor Hélio Leão, que havia vetado um colega nosso a uma excursão ao sul do país por motivos políticos.
Eu só conhecia Hélio de nome, e eis-me de repente diante do próprio. Nunca me esqueceu, como diria Machado de Assis, a sua figura insignificante. Em todo caso, desproporcional ao poder que detinha. Era um tipo baixinho, mirrado, um tanto macilento talvez por falta de sol, e, contrariando o sobrenome, gentil! Disse-me com delicadeza que as autoridades constituídas (ou algo assim) não viam com bons olhos a minha candidatura, e que eu devia renunciar. Uau! Nunca soube – e não me interessa saber – as razões do veto. Suponho que eram as consequências do inquérito a que tinha respondido na Polícia Federal.
Juro que neste momento em que escrevo não me lembro desses acontecimentos com espírito de revanche em relação a esses funcionários miúdos do regime. Antes, minha lembrança decola desse nível pedestre e sobrevoa aqueles anos valendo-se uma filósofa do quilate de Hannah Arendt sobre como o mal pode ser uma coisa banal. Terrível ensinamento. Parece-me, hoje, o caso. Não sei direito quem era Hélio Leão. A pessoa física, como diz um outro Leão, o do imposto de renda, não me interessa. Interessa-me pensar que era um funcionário cioso do seu emprego e das suas promoções, com o que garantiria uma boa pensão para a sua família. Quantos de nós teriam feito diferente? Não sei. Sei apenas que a questão me interpela. Outra vez, passemos.
Começou uma quebra de braço entre nós dois. Ele queria que eu renunciasse, e eu queria que ele assumisse o veto ao meu nome e me vetasse. Nada feito. Nenhum dos dois cedia. Se bem me lembro, estive uma ou duas vezes mais na Reitoria. E nada. Até que um belo dia comecei a ter medo. E, sem votos de “cordiais saudações” (pelo menos isso fiz!), enviei-lhe minha renúncia. Confesso, aqui entre nós, que me senti de certa forma liberado de uma carreira para a qual não tinha nenhuma vocação. Como dizia o finado Batalhinha, “Bença, Mãe Maria… desapareci!”.


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