segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Pirataria de software: uma estratégia de marketing das grandes multinacionais. Entrevista especial com Vicente Aguiar

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“Precisamos usar os princípios de liberdade de expressão e de colaboração que a internet permite, potencializar esse processo democrático, e não o contrário, proibindo e impedindo como, às vezes, está acontecendo em nome da preservação de um direito autoral, que muito mais castra o poder criativo da sociedade do que o potencializa”, defende o mestre em Administração.

Confira a entrevista.
Atualmente tramita no Senado dos Estados Unidos um projeto de lei que responsabiliza sites pelo conteúdo postado por usuários. Se algum conteúdo for considerado ilegal, a punição poderá recair sobre os donos do site que hospeda o conteúdo. As penas incluem desde seu bloqueio até a prisão dos responsáveis por até cinco anos. A questão tem gerado polêmicos debates em torno das regras no mundo virtual, do conceito de censura e liberdade de compartilhamento e até do tema da pirataria na rede. Para refletir sobre esses assuntos, a IHU On-Line entrevistou por telefone o mestre em Administração Vicente Aguiar. Segundo diz, o necessário a se fazer é, antes de fazer uma legislação penal, criar um arcabouço de direitos civis para os usuários da internet. Segundo Vicente, a SOPA e todas as leis que estão sendo debatidas nos Estados Unidos em relação ao conteúdo na internet acabam mostrando uma fragilidade: o quanto nós, brasileiros, somos dependentes tecnologicamente das soluções que são oferecidas nos Estados Unidos. “Hoje, do ponto de vista da produção tecnológica, existe um nível de desigualdade muito grande, porque a maioria da infraestrutura que garante o funcionamento da internet é dos Estados Unidos. Então, hoje, tudo o que impacta nos Estados Unidos em termos de internet acaba também impactando para o mundo de uma forma muito intensa. Para se discutir e para se viabilizar uma governança mais ou menos equânime, dentro de uma geopolítica internacional, é necessário que também os países em desenvolvimento, como Brasil, China, Índia e todos os outros, também entrem nesse processo de emancipação tecnológica, ou seja, precisam ser produtores de serviços e de infraestrutura para a internet”, defende. Para Vicente, “precisamos usar os princípios de liberdade de expressão e de colaboração que a internet permite, potencializar esse processo democrático, e não o contrário, proibindo e impedindo como, às vezes, está acontecendo em nome da preservação de um direito autoral, que muito mais castra o poder criativo da sociedade do que o potencializa”.
Vicente Aguiar (foto) é mestre em Administração pela Universidade Federal da Bahia. É gestor da Cooperativa de Tecnologias Livres Colivre, onde atua nas áreas de comunicação, planejamento estratégico, elaboração e gestão de projetos.
Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como você avalia a lei antipirataria em discussão no Senado norte-americano conhecida como SOPA, sigla para Stop Online Piracy Act? Ela é positiva ou negativa?
Vicente Aguiar – Uma lei como essa é, a princípio, muito ruim, principalmente em relação à produção de conteúdo na internet, porque, de certa forma, ela vai impedir a liberdade que os usuários têm de pegar uma determinada notícia e modificá-la, fazendo uma segunda versão. Vai impedir também que se pegue um vídeo no YouTube e o remodele. Tudo o que chamamos de “cultura do remix” será ameaçado. De certa forma, isso acaba impactando no processo de colaboração e inovação que ocorre em virtude da internet. É claro que, por outro lado, há uma necessidade de regulamentação. Entretanto, o debate que se coloca para os Estados Unidos é o mesmo que fazemos para o Brasil. Este tipo de lei, que chamamos de “lei punitiva”, acaba acontecendo sem um debate sobre a questão de direitos e deveres na internet. O que precisa ser feito previamente, antes de fazer uma legislação penal, é criar um arcabouço de direitos civis para os usuários da rede.

IHU On-Line – As normas propostas abrem caminho para a censura?
Vicente Aguiar – Com certeza. Basta que alguém denuncie a partir de infinitos interesses. Por exemplo, se o site de vocês publica uma informação que veio de um livro, mas vocês não podem usar tal informação, porque estarão infringindo o copyright, já será alvo de uma possível denúncia. Ou se decidem extrair uma citação, uma imagem, ou um conteúdo pego com referência, mas que foi mal citado, o autor pode discordar ideológica ou politicamente da sua abordagem na reportagem e tirar o conteúdo do ar. E você, ou o site que você representa como provedor de conteúdo, terá que ser obrigado a retirar o conteúdo por causa da denúncia e não em função da comprovação. Esse é o problema. Como tirar um conteúdo do ar se não existe prova de que aquilo, de fato, foi uma violação a determinado copyright?

IHU On-Line – As normas propostas na lei podem alterar em que sentido o modo como a internet funciona?
Vicente Aguiar Na verdade, elas podem impactar de diversas formas a nossa relação com a internet. Tudo depende dos serviços que estão hospedados ou armazenados em servidores que ficam nos Estados Unidos. Essa é a primeira pergunta que todos fazem: “Mas se é um projeto de lei nos Estados Unidos, o que isso impacta para nós, aqui no Brasil?”. Impacta porque, infelizmente, a maioria dos serviços que nós, brasileiros, utilizamos de internet, ou estão hospedados nos Estados Unidos, ou pertencem às empresas brasileiras  a exemplo de sites de revistas e de jornais nacionais – que se hospedam lá. Por isso que é importante discutir esta lei. Na prática, isso significa dizer que qualquer vídeo, foto, imagem que eu poste ou no Orkut, ou Facebook, etc., e por acaso alguma pessoa denuncie como uma cópia ilegal ou como um ato de pirataria, este site automaticamente sai do ar. O princípio que rege as normas dessa lei é o de que “denunciou, sai do ar”; depois se vai atrás para comprovar se aquilo tem ou não fundamento. A questão é que volta o debate sobre a pirataria. O que é pirataria em um ambiente digital? Quais são os limites dela? O problema é que, antes de se fazer o debate sobre o que é pirataria e sobre direitos e deveres na internet, o governo dos Estados Unidos está tomando um rumo pressionado pelas empresas das indústrias de copyright, para atacar qualquer tipo de denúncia. Então, para muitas pessoas ligadas ao movimento da cultura livre, do software livre, essas são práticas semelhantes às que o Irã e a China fazem em relação aos usuários da internet. Ou seja, sem nenhum tipo de fundamento, apenas porque o governo achou que houve uma denúncia, tira-se o site do ar e impede-se que os usuários publiquem ou acessem determinados conteúdos.

IHU On-Line – Qual sua opinião sobre as ações conjuntas de paradas de sites, como protesto à lei? Quais as consequências do mundo da web em "greve"?
Vicente Aguiar  Na verdade elas são necessárias, assim como qualquer greve. Quando se chega a um processo em que os conflitos e os interesses de determinada classe  nesse caso a classe que defende um padrão antigo de produção de conteúdo estão sendo mais fortemente representados, há a necessidade de protestos e de manifestação. É muito sadio e válido o que a Wikipedia e o que o Google fizeram. Por outro lado, é importante ressaltar que, fazendo o papel de advogado do diabo, a SOPA e todas as leis que estão sendo debatidas nos Estados Unidos em relação ao conteúdo na internet também acabam mostrando uma outra fragilidade: o quanto nós, brasileiros, somos dependentes tecnologicamente das soluções que são oferecidas nos Estados Unidos. Infelizmente, nós ainda não nos preocupamos em desenvolver nossa própria estrutura tecnológica, com algumas exceções, é claro. Ou seja, onde estão as redes sociais e os buscadores desenvolvidos por empresas brasileiras, pelo governo, estados e municípios brasileiros? Se não houvesse a dependência tecnológica como a que temos hoje dos Estados Unidos, a SOPA poderia acontecer lá que pouco interferiria aqui. A não ser, é claro, no sentido de servir como referência para que deputados do Brasil cheguem e digam: “Olha, está vendo o que aconteceu nos Estados Unidos? Vamos fazer igual no Brasil”.

IHU On-Line – Quais os principais desafios que envolvem a governança da internet?
Vicente Aguiar A governança da internet perpassa tanto por uma questão de infraestrutura tecnológica como, também, de um arcabouço jurídico. Hoje, no Brasil, existe o Comitê Gestor da internet e, inclusive, do ponto de vista da governança, é uma referência para o mundo, no sentido de ser um comitê composto por sociedade civil, representantes do governo e representantes de empresas que definem os parâmetros técnicos e, às vezes também, normativos das relações da internet no país. Porém, ele tem uma certa restrição de atuação. Esse exemplo do CGI deveria acontecer em todos os países e deveria também haver uma organização multilateral para gerenciar o papel normativo que a internet tem na vida das pessoas, no mundo. Além dessa questão normativa, ressalto também a questão tecnológica. Para ter um nível de relação, vamos assim dizer, mais ou menos democrática, é necessário que a base material e tecnológica da internet, desenvolvida por empresas, por governos e pela sociedade civil, em todos os países, seja comum. E, hoje, do ponto de vista da produção tecnológica, existe um nível de desigualdade muito grande, porque a maioria da infraestrutura que garante o funcionamento da internet é dos Estados Unidos. Então, hoje, tudo o que impacta nos Estados Unidos em termos de internet acaba impactando para o mundo de uma forma muito intensa. Para se discutir e para se viabilizar uma governança mais ou menos equânime, dentro de uma geopolítica internacional, é necessário que também os países em desenvolvimento, como Brasil, China, Índia e todos os outros, entrem nesse processo de emancipação tecnológica, ou seja, precisam ser produtores de serviços e de infraestrutura para a internet.

IHU On-Line – Como controlar o conteúdo na internet e manter o direito à liberdade de expressão, sem censura?
Vicente Aguiar – A fórmula disso é a democracia. Agora, como isso pode acontecer na prática, como a internet está revolucionando todos os tipos de comunicação e interação social no mundo, é necessário também que nos permitamos que a própria internet diga como isso pode acontecer. Por exemplo, avalio como muito positiva a construção de um marco civil da internet, feito pelo Ministério da Justiça, onde um projeto de lei pode contar com a participação de várias pessoas online, construindo e debatendo sobre o texto. Agora, por outro lado, essa ação esbarrou no processo de aprovação e na voz da burocracia legislativa brasileira, porque até agora não foi aprovada. Mas a forma de se encontrar uma solução para isso é a democracia, não tem jeito. É diálogo, e a internet possibilita meios ainda mais revolucionários e inovadores para tal. Precisamos usar os princípios de liberdade de expressão e de colaboração que a internet permite, potencializar esse processo democrático, e não o contrário, proibindo e impedindo como, às vezes, está acontecendo em nome da preservação de um direito autoral, que muito mais castra o poder criativo da sociedade do que o potencializa.

IHU On-Line – Como deveria ser a intervenção do poder público – seja o governo e/ou a Justiça nos crimes cibernéticos?
Vicente AguiarO fato de não haver ainda uma legislação que fale dos direitos e deveres, ou seja, um marco civil para a internet e seus usuários, para os provedores de conteúdo e de serviços, fica difícil conseguir uma ação equilibrada do poder público, que hoje não sabe reagir nem lidar com a internet. O poder público tem dificuldade de entender a internet, salvo algumas exceções. Em algumas instâncias, o ministério público está contratando hackers, pessoas que entendem a fundo de tecnologia, para tentar, de alguma forma, ajudar na fiscalização e no desenvolvimento de políticas públicas. Mas é necessário, em primeiro lugar, que o governo entenda, uma vez que é institucionalizado e só pode agir dentro das leis. Como as leis não existem, cada instância governamental toma atitudes próprias a partir de interpretações particulares. Então, acaba sendo uma coisa completamente difusa e caótica. E aí sobra para a internet, porque às vezes os abusos que podem acontecer em relação aos direitos autorais acontecem em virtude desse não entendimento.

IHU On-Line – A partir da ética da internet, quais os mais recentes desafios quando o assunto é a pirataria?
Vicente AguiarO debate sobre a pirataria é muito complexo. Por exemplo, se você hoje pega um software que não é livre e copia, para muitos autores e sociólogos você nem deve ser chamado de pirata, mas de corsário. A pirataria de software é uma estratégia de marketing das grandes multinacionais. Ou seja, você nunca vai ver o Bill Gates fazer uma campanha internacional contra a pirataria de software. Porque ela acaba funcionando como aquela estratégia de traficante, de que é algo gratuito. O usuário que pirateia em casa e não paga a licença vai pagar por ela em um determinado momento, pois vai criar uma relação de dependência com aquela ferramenta. Quando for para a empresa dele, terá que pagar a licença, porque tem advogados da Microsoft cobrando. Por outro lado, a pirataria de música, de filmes e de livros acaba possibilitando a democratização do acesso a bens culturais. Quantos artistas que jamais teriam acessos a suas músicas e filmes se não fosse pela internet? Então, isso prejudica esse artista? Percebe-se que, na prática, não, porque normalmente para um artista de música o que garante a remuneração é o show e não o CD, do qual ele recebe só de 1 a 5% de cada venda. Então, na verdade, a internet age como um agente intermediário e isso acontece também na produção de bens culturais. Então, a discussão ética sobre a pirataria tem que ser feita dentro de um contexto de complexidade, ou seja, você não pode dizer que é contra a pirataria de tudo, pois tem que saber de que tipo de pirataria está falando.

IHU On-Line – Quais os principais temas que pautaram os debates da Campus Party, que aconteceu de 6 a 12 de fevereiro em São Paulo?
Vicente Aguiar – A Campus Party é um evento bacana, pois consegue reunir pessoas que são apaixonadas por tecnologia e empresas que desenvolvem coisas inovadoras. Além disso, ela envolve a comunidade de hackers, de desenvolvedores. Enfim, é uma grande festa. Para mim, o que “bombou” na Campus Party nesse ano é a trilha de software livre. A programação estava muito boa e eu destaco aí, principalmente, a questão de produção de vídeo, de música e de conteúdos dentro de plataformas que são livres.

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