domingo, 8 de janeiro de 2012

O CONFRONTO INVEJOSO

Buscado no Eu, incomodo?...



por Francesco Alberoni

Nós desejamos aquilo que vemos. Ser como os outros, ter o que os outros têm. Desde meninos começamos a olhar os nossos irmãos, os nossos pais. Em adultos observamos o que fazem os nossos vizinhos, os personagens do espectáculo, identificamo-nos com eles.O desejo é uma energia atiçada a partir do exterior . O contacto com as outras pessoas estimula-nos, seduz-nos, tenta-nos, leva-nos a querer-mos sempre mais, sempre novas coisas, a colocarmo-nos metas cada vez mais elevadas, a irmos mais além. Mas esta incessante actividade de desejo provoca, inevitavelmente, frustrações. Nem sempre conseguimos obter aquilo que obtiveram os que nos serviram de modelo. Somos então obrigados a dar um passo atrás. Este recuo pode assumir diversas formas:de cólera, de tristeza, de renúncia. Ou mesmo de renegação do modelo com que nos tínhamos identificado.Para repelir o desejo, repelimos a pessoa que no-lo havia indicado, desvalorizamo-la, dizemos que não merece, que não vale nada.
É esta a primeira raiz da inveja.
A outra raiz da inveja apoia-se na necessidade de julgar. Para sabermos o que valemos comparamo-nos com qualquer outro. Começamos em crianças a compararmo-nos com o nosso irmão, ou é a nossa mãe que nos compara com ele. E depois continuamos ao longo da vida com os amigos, com os colegas, com os que nos superaram e com os que deixamos para trás; por vezes, valorizamo-nos, outras somos valorizados. Isto aconteceu em todas as épocas, acontece em todas as culturas, nos homens nas mulheres, e ninguém lhe pode escapar. Melhor ou pior, por cima ou por baixo, mais e menos, bem e mal, elogio e reprovação, sucesso e insucesso, tudo isto são comparações. Para pensarmos em nós próprios estamos condenados a compararmo-nos com outros seres humanos, com as suas qualidades, com as suas virtudes, a sua beleza, a sua inteligência, os seus méritos. No fundo de qualquer valorização há sempre «alguém» que constitui a nossa medida, que no confronto se instala no centro do nosso ser. Queremos ser melhores, superiores, mais apreciados. Não há qualquer limite para esta ambição, para esta ascensão. Por isso não há fim para o confronto, para o juízo, para o ilimitado suceder-se de valorizações, ora melhor, ora pior, ora um passo em frente, ora um passo para trás. A energia social de conjunto é o produto desta força ascensional, desta propulsão comparativa. E se não conseguimos, se a comparação for em nossa desvantagem, sentimo-nos diminuídos, desvalorizados vazios. Procuramos, então, proteger o nosso valor. Aqui ainda podemos fazê-lo de muitas maneiras: renunciando às nossas metas, tornando-nos indiferentes, ou então procurando desvalorizar o modelo, baixando-o para o nosso plano. Este mecanismo de defesa, esta tentativa de nos protegermos através da acção de desvalorização, é a INVEJA.
A inveja é, por isso, uma paragem, uma retirada, um estratagema para nos subtrairmos ao confronto que nos humilha. É uma tentativa de abastardar o estímulo desvalorizando o objecto, a meta, o modelo. Mas é uma tentativa incongruente, porque o objecto do desejo e o modelo continuam ali, como uma teia na qual a alma se debate prisioneira. Desejar e julgar são dois pilares do nosso ser, mas também a fonte de inveja. E a inveja mostra-se sempre, como um esplendor, ao nascer de qualquer desejo e ao aparecer de qualquer valor. Porque todo o desejo encontra sempre qualquer obstáculo, toda a comparação pode pôr-nos em dificuldades. Em toda a ambição desejosa há risco de naufrágio. Em toda a aspiração há a possibilidade de nos extraviarmos.
Todos os nossos movimentos deixam de ser um procedimento rectilíneo, seguro, impertubável. Corremos para a frente,depois paramos, olhamos em redor, voltamos novamente a proceder com prudência. A seguir reassegurados, voltamos a fazer outro avanço. O fluxo vital é um contínuo suceder-se de explorações, de tentativas e de erros, de avanços e de recuos. O momento de paragem, de refluxo, de recusa, faz parte integrante do processo, é-lhe essencial. A inveja é um acto de defesa, uma tentativa de nos recolhermos num refúgio, numa fortaleza, com medo do que nos espera. É por isso a sombra negra do nosso esforço vital, a omnipresente força contrária à nossa vontade.
A inveja tem as suas raízes nas nossas motivações mais profundas, nas nossas aspirações mais elevadas. E, no entanto, a forma como esses fins e esses desejos se nos revelam na inveja, está distorcida e é repugnante. Não é um esforço límpido, luminoso, uma corajosa marcha em direcção à meta, não é sequer uma aceitação consciente do desafio. O desejo frustrado regressa através da nossa concentração obsessiva em alguém que conseguiu ser bem sucedido onde falhámos, e nós não estamos apenas descontentes com o nosso insucesso, mas cheios de ódio pelo que venceu. A inveja tem raízes no modelo, mas esse modelo, através do processo da inveja, transforma-se numa figura em que não podemos pensar sem nos sobressaltar-mos, sem sermos tomados de raiva e de desânimo. Se os nossos desejos são gerados pela presença dos outros, se o juízo sobre nós próprios é o resultado de uma comparação, a vida, no seu fluir impetuoso, é deixar-se arrastar por esta corrente. É aceitar, ou esquecer, ou não querer saber, que uma grande parte dos nossos desejos nos é instigada pelos de fora, que a ideia que temos de nós próprios é o murmúrio de uma multidão, o reflexo das suas palavras, que não possuímos uma substância interior, autónoma, independente.
A inveja é uma tentativa inútil, sem resultado, de nos subtrairmos a esta condição humana, a este ser forjado pelos outros, pelas suas palavras, pelos seus juízos. É um protesto rancoroso contra esta substância evasiva que avilta o nosso ser. É uma revolta contra a nossa falta metafísica de autonomia. Mas é um protesto cheio de má-fé, porque apenas o agredimos quando nos sentimos vacilar, não antes. Pelo contrário, antes, clamávamos a construção da nossa segurança e do nosso valor com base nesses mesmos confrontos. A inveja é um protesto de um batoteiro que se lembra de ter feito batota, quando começa a perder. Nessa altura quereria fazer um jogo leal, mas não o pode fazer porque pensa que todos fazem batota e, não confia neles, como não confia em si próprio.
A inveja é a maldade contra os outros quando pensamos que a sociedade, o mundo, não são suficientemente bons para connosco. É um veneno que colhemos e com o qual intoxicamos o ambiente. E neste ambiente nos movimentamos incomodamente, temos dependência e medo. Mas, mesmo quando somos nós os invejados, sentimos esse ar envenenado, maléfico. A inveja dos outros fere-nos, envenena a nossa vida. A inveja é agressividade. Se muitos te invejam, se muitos procuram, por todas as formas, diminuir o teu valor, desacreditar a tua imagem, se essa acção de intoxicação continua dia após dia, acabas por te sentir sofucar. Fazes qualquer coisa que tem valor e apercebes-te de que suscita zombaria. És amável e, como resposta, obtens troça. Redobram os esforços e aumenta a hostilidade dos teus colegas, dos teus parentes, daqueles que melhor e mais facilmente te deveriam compreender, que deveriam demonstrar-te o reconhecimento que sentes que mereces.
Há momentos em que podes aperceber a inveja como uma presença agressiva, tangível. Podes ouvir, como um animal que possui um sexto sentido, o bater, o pulsar da agressividade. E apercebes-te de que este pulsar enche a sala em que entras, deforma os vultos que te esperam. Enquanto que antes, quando abrias uma carta, vias apenas as palavras, lia-las com o seu significado literal, passas então a perceber entre as linhas, por detrás delas, a imundice, o ódio daqueles de que está impregnada essa carta, dos quais ela nasceu. Durante uma conversa, nas alusões, nas zombarias,na ironia, sentes o odor nauseabundo. Odor de homens selvagens, odor de carnificina, odor de cães de caça.

"In «OS INVEJOSOS» 
de Francesco Alberoni/Bertrand Editora"

Nenhum comentário: