sábado, 1 de outubro de 2011

Pro dia nascer feliz: uma lente sobre a educação

“Pro dia nascer feliz” tem o mérito de abordar o tema da educação sob forma documental. O filme desmascara o shopping-escola mostrado na TV e mostra o abismo que existe entre as escolas de elite e as escolas públicas. 

Por Ronan

 Passa Palavra 

Junto com o crédito imobiliário, o cinema nacional também é um setor quase totalmente financiado por recursos públicos. Há ainda a semelhança de retirar recursos de todos e atender mais especificamente a classe média. O cinema nacional tem uma enorme dívida com a população brasileira. Apesar do bom exemplo de alguns filmes, como Cronicamente Inviável (2000), Central do Brasil (1998), Tropa de Elite (2007), O Prisioneiro da Grade de Ferro (2003), Notícias de uma Guerra Particular (1999) e Braços Cruzados, Máquinas Paradas (1978), há muito a ser feito.
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Descontração na sala de aula
Independente das leituras que se possa ter sobre os títulos citados, inegavelmente eles jogam luz sobre problemas brasileiros, forçando o debate e um maior esclarecimento sobre questões importantes. Num país com pouca leitura e milhões de iletrados ou analfabetos funcionais, o cinema adquire maior importância pedagógica. Muitos temas estão a espera de um filme à altura: biografias nacionais, a formação do país, o modelo de desenvolvimento, a questão urbana, a questão indígena, transportes, estrutura política, clientelismo, infância, novas migrações, moradia, movimentos sociais, escravidão, racismo… Falta-nos um Spike Lee, um Moore, um Mário Van Peebles (do magistral Panteras Negras, E.U.A., 1995). Nesse sentido, foi uma boa notícia a realização de Pro Dia Nascer Feliz (2007), filme documentário de João Jardim que aborda a educação no país.
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Professoras em conselho de classe
Ainda está para ser feito “o filme” sobre educação no Brasil, e o meu palpite é que um trabalho para dar conta da questão precisaria adotar a metodologia de O Prisioneiro da Grade de Ferro: treinar as pessoas envolvidas para manusearem as câmeras e deixar que elas filmem o seu cotidiano. Por mais desgraçado que seja o ambiente escolar mostrado, a simples presença de pessoas filmando acaba por esconder fatos, pois força um outro comportamento. Um exemplo é ver no filme a ausência de xingamentos e ofensas contra os alunos e suas famílias em reunião de professores. Apesar disso, Pro Dia Nascer Feliz é um dos melhores filmes que eu conheço sobre o tema e faz par com o francês Entre os Muros da Escola (2008) como roteiro obrigatório para gente da área ou interessados em geral.
A sinopse oficial de Pro Dia Nascer Feliz afirma que o filme trata da relação do adolescente com a escola, focando também a desigualdade social e a banalização da violência. De fato, o filme mostra o cotidiano escolar de uma região extremamente pobre em Pernambuco, outra precarizada no Rio de Janeiro, umas em situação de barbárie em São Paulo, uma em estado razoável em Itaquaquecetuba (SP) e uma escola de elite de São Paulo. Há uma nítida opção pelo aluno, mostrando jovens pressionados em busca de resultados, outros abandonados física e afetivamente pelos pais, submetidos a um conflito de gerações com os professores, abandonados por uma escola que muitas vezes nem aula tem. Mostra que há angústias comuns entre os jovens de todas as classes, mas um abismo social que os separa.
O mérito do filme está, primeiro, em abordar a questão sob forma documental. É um antídoto para Malhação, programa da TV aberta brasileira, de alta audiência entre os jovens, que aborda o cotidiano de uma escola particular. Eis que no vaivém dos capítulos de Malhação, a pretexto de se falar de estudantes e escola, os alunos não são focados como tais, mas como elementos conviventes em um shopping. Tanto é que praticamente só é focado o espaço fora da sala de aula, há pouco de estudantes e pouco de escola. No programa é mostrado namoro, fofocas, moda, briguinhas entre grupos, corpos belos, muito consumo, mas nenhuma pessoa na real condição de estudante, menos ainda do que é a média do estudante brasileiro. Certamente, se Malhação mostrasse a realidade do cotidiano escolar da população não teria a audiência que o shopping batizado de escola lhe dá. Trata-se de um exemplo do que não é a educação brasileira. Pro Dia Nascer Feliz desmascara o shopping-escola mostrado na TV.
Outro mérito: o filme conseguiu fugir de dois grandes estereótipos em filmes sobre educação. Geralmente, o romantismo é base do assunto e foca-se no professor, mostrando-o como herói. Num estereótipo, o professor é o herói libertário despertador de paixões, a exemplo de Escritores da Liberdade (E.U.A., 2007) e Sociedade dos Poetas Mortos (E.U.A., 1989). O salário, o trabalho e todas as adversidades não são entraves para o heroísmo individual docente, cuja vontade é capaz de derrotar todos os problemas. No outro estereótipo, em filmes como Ao Mestre com Carinho (E.U.A., 1967), o professor é retratado como um herói autoritário, regenerador moral, cujo pulso firme é o fio condutor da salvação de alunos tidos como moralmente perdidos. Em Mentes Perigosas (E.U.A., 1995), novamente o heroísmo individual da professora é a fonte de humanização de alunos selvagens.
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Sala de aula precária
Pro Dia Nascer Feliz foca o aluno e mostra o professor tal qual ele é: na escola dos pobres, um trabalhador precarizado tão vitimizado quanto os alunos e impotente diante do caos em que se vê imerso. Na escola dos ricos, um elemento de classe média desfrutando do status e respeito que as condições lhe oferecem. Aliás, uma forma interessante de se pensar o filme está na comparação da figura dos professores das diferentes escolas. De um lado, professoras descabeladas, com olheiras, cansaço visível e uma situação que leva muitos aos calmantes e antidepressivos: xingamentos, ofensas, descaso e a convivência em escolas e bairros que são uma tortura estética. Do outro, a suavidade de uma professora falando de O Cortiço, de Aloísio Azevedo, do alto de seu salário de R$ 6 mil mensais, sem expressão de cansaço, muito bem vestida e diante de uma platéia silenciosa de futuros vencedores, num ambiente aprazível, limpo e arborizado; da cadeira ou sofá pode-se sentir o frescor que o ambiente transmite.
Esse ponto é importante no filme. Embora se possa desejar que o professorado deveria ser melhor e mais ativo quanto à organização do trabalho educacional, o filme mostra claramente como é falaciosa a tentativa de se culpar pura e unicamente os professores pelo fracasso educacional. Se em algumas cenas mostra-se o descaso de alguns professores com a figura do aluno, muitas outras mostram professores muito engajados que, no entanto, são massacrados pelas condições estruturais reinantes. Se não se pode negar a má qualificação docente e o fato de que todos nós deveríamos saber sempre mais de alguma coisa, o filme mostra que o problema está na falta de suporte geral para os docentes e para o ambiente em que trabalham, a começar pela formação. O professor precário de hoje é o fruto da criação planejada de uma educação solapada, muito útil aos donos de escolas particulares, que precisa lidar com uma realidade social complexa, tendo que atender simultaneamente alunos de alto potencial e jovens desinteressados e indisciplinados, sem auxílio das famílias ou uma rede de proteção.
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Alunas do Colégio Santa Cruz
Mais mérito: o filme consegue mostrar que o desinteresse dos alunos, a sabotagem educacional, não está presente somente nos colégios destinados aos populares. No colégio Santa Cruz, de São Paulo, cuja mensalidade beira os R$ 1.600 reais, encontram-se também pichações, agressões, mal-estar com a escola, alunos sonolentos, desinteressados, repetentes e que pouco valor dão aos estudos, mais interessados nas conversas e nos beijos, amizades e namoros. Por este norte, mostra-se que se a escola existe como uma coisa pensada por seus gestores e professores antes de os alunos a adentrarem; estes, por sua vez, procuram adequá-la aos seus interesses uma vez que nela se inserem. Num mesmo prédio, temos a escola tal como a fazem e pensam os gestores e professores e outra escola tal qual a fazem e pensam os alunos. O que é uma característica de toda organização: o poder de fato é sempre uma média entre o que pretendem os administradores e o que permitem e desejam os administrados, seja na escola, hospital ou penitenciária.
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A talentosa Valéria, de Pernambuco
Embora se encontre quem veja o filme e procure justificar o fracasso das más escolas públicas pelo desinteresse e indisciplina dos alunos, transformando em culpados as verdadeiras vítimas, as imagens não deixam dúvidas quanto aos problemas estruturais da educação pública centrados em gestão, qualificação e financiamento. Péssima estrutura, professores mal qualificados, péssimos gestores, carentes de qualificação mínima, nenhuma ou pouca assistência ao aluno. Enfim, uma escola condizente com a formação de um exército de trabalhadores precarizados onde os índices de segurança pública e fatores disciplinares acabam pesando mais na formação de uma juventude que possui pela frente um mercado de trabalho rústico. Claramente, o maior interesse dos alunos mostrado no colégio de elite é condizente com o futuro que os espera. Enquanto os primeiros estão numa escola que significa uma verdadeira condenação social, com horizontes de trabalho pesado e mal remunerado, os últimos têm, a cada dia, confirmada a sua destinação para cargos de chefia ou trabalhos bem remunerados e bem vistos socialmente. No final do filme, informações mostram que a aluna da escola pública abandona a poesia e os escritos, terminando como dobradora de roupas, enquanto a aluna do Santa Cruz figura como ingressante em engenharia na USP.
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Alunos de Duque de Caxias-RJ
O menino de Duque de Caxias, repetente e indisciplinado, paradoxalmente termina no exército. A sonhadora de Pernambuco faz curso normal para tornar-se professora; outra, de São Paulo, fugida da escola por ameaças de agressão, já com filho, sonha em assumir o giz e o quadro negro. Depoimentos fortes mostram uma jovem narrando como assassinou a facadas uma colega no colégio, e outros rapazes contam suas desventuras no mundo do crime, agredindo e assaltando. Mas o horror maior não está somente nos depoimentos daqueles que ficaram inseridos em locais onde a degradação social instalou uma cultura de morte e desvalorização da pessoa humana. No depoimento da jovem do Santa Cruz, a mesma que figura como ingressante em engenharia na USP, vemos a aluna tentar aludir uma preocupação com os pobres para, em seguida, dizer que não pode se mobilizar em prol de uma melhoria social porque isso implicaria abandonar sua rotina que inclui natação, clube, yoga etc. Explicita que tem sorte por ter nascido na elite e precisa cuidar de seus interesses, como se o seu bem-estar não estivesse umbilicalmente ligado à miserabilidade de tantos outros.
Um grave problema do filme é seu esforço em não culpabilizar os dirigentes pelas condições da escola pública. Embora mostre alguns números, como a quantidade de colégios sem banheiros no país (13,7 mil), sem água (1,9 mil), alto índice de abandono até a 8ª série (41%), e o fato de metade dos alunos do fundamental não saberem escrever corretamente, a abordagem oculta culpados. Faltam dados sobre política educacional, sobre financiamento, sobre currículo, sobre história da educação brasileira, que permitam o adequado entendimento de como é que se criou tamanha barbárie. Dessa forma, o filme alimenta o cinismo de sempre: se sabem os problemas educacionais mas nunca se sabem os responsáveis pelos mesmos. Mais do que qualquer área, em educação só se encontram vencedores. Ninguém se apresenta como o diretor ou antigo secretário do aluno condenado por sua miséria educacional. Quem conhece a coisa por dentro, certamente fica em dúvida se a educação pública, em média, perde para trabalhos como o de policial e carcereiro no aprendizado paulatino de um cinismo organizacional. É um cinismo como método.
Outro grave problema é a forma como o filme alimenta o mito da boa escola particular. Embora foque uma escola em melhor estado ao lado de escolas públicas péssimas, ao compará-las somente com uma escola privada de elite alimenta-se o discurso estelionatário do empresariado da educação. Primeiro, não se consegue entender a má formação docente sem se pensar na forma como empresas de educação extraem dinheiro das pessoas ofertando-lhes um péssimo produto, sem que sejam importunadas pelas autoridades responsáveis em fiscalizar a área. Explicando: empresas financiadoras de políticos e políticos donos de empresas de educação. Eis que a grande maioria dos colégios privados também é de má qualidade e somente uma situação de barbárie nas escolas públicas é que dá a eles alguma vantagem na área. Por outro lado, no seio de grandes redes públicas de educação, existem experiências bem sucedidas, colégios de melhor qualidade que muitos dos particulares das redondezas. Entretanto, além de minoritários, tais colégios possuem mecanismos informais de seleção de ingressantes para excluir os mais precarizados, e acabam sendo preenchidos com filhos de professores, pequenos comerciantes, policiais etc. Quem quiser saber qual é o melhor colégio público de uma dada cidade basta averiguar onde são matriculados os filhos de professores que estudam na escola pública.
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Filmando a escola
Talvez não se possa culpabilizar o diretor por tais lacunas, mas quem vê o filme não pode esquecer as grandes ausências. Aliás, são tais ausências que dão um sentido fatalista para o mesmo. Além de não retratar as boas escolas públicas, tanto de sistemas estaduais quanto do sistema federal, nada se fala/mostra de iniciativas gloriosas da chamada sociedade civil. Existem bons trabalhos não citados de ONGs, movimentos e cursinhos populares, que é o campo onde se afirmam mais acentuadamente alternativas ao quadro majoritário. A rede de cursinhos populares que se disseminou no país desde os anos 1990, focados em iniciativa do estudante, eliminação de burocracias, otimismo, preocupação com a condição do aluno, cidadania ativa e trabalho voluntário ou semi-voluntário, merecia por si só um documentário. Se se podem usar antigas palavras para novas realidades, os cursinhos populares que foram pipocando pelas periferias brasileiras constituem o que há de mais próximo na atualidade de uma educação popular e/ou libertária. Eis que quem olhar de fora somente o objetivo final de aprovação no vestibular e congêneres pouco terá noção do que realmente se passa no seio de tais empreitadas.
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Alunas em Pernambuco
O caso das ONGs é emblemático. O Brasil vive um momento paradoxal em que cada vez mais se fala em educação, ao passo que tradicionais setores se encontram absolutamente perdidos no assunto. É um quadro em que o empresariado está fortemente ativo quanto ao tema, fundando movimentos como o Todos Pela Educação, ao lado do silêncio criminoso das universidades e derrota retumbante dos sindicatos e professores que, presos no debate salarial, não se prepararam para o novo campo de batalhas inaugurado, que foca no currículo, avaliação e projeto pedagógico. Isso para não citar a ausência de pais e alunos quanto ao tema. Nesse quadro, é por iniciativa de algumas poucas ONGs que, bem ou mal, se tem dado uma resposta aos projetos empresariais e tecnocráticos das secretarias. No geral, está-se tentando criar um consenso de que quem entende de educação é o empresariado e seus tecnocratas auxiliares, e são algumas ONGs que têm sido mais eficazes em combater tal linha.
Para não estender o texto, o filme tem enorme valor mas adquire maior potencialidade se for visto não como um discurso pronto e acabado, mas como um alicerce para outras indagações, novas buscas, saber mais. Ao mostrar um quadro discrepante entre a escola de elite e as escolas públicas, talvez, a partir dele, podemos pensar que a educação é uma coisa que só funciona se for oportunidade para sonhos ou confirmação de superioridade social. A escola de elite funciona melhor porque é um ponto de uma rede de proteção que funciona bem e garante ao aluno um futuro promissor. A escola pública só vai bem se permitir sonhar. Enquanto sinônimo de condenação social, os alunos, perspicazes, não se interessam por ela.



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