domingo, 16 de outubro de 2011

Carlos Drummond : A morte do leiteiro

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Fonte :shvoong.com

A poesia “Morte do Leiteiro” é uma das inúmeras perfeições do autor Carlos Drummond de Andrade. Há um narrador onisciente, personagens em conflito (o leiteiro e o burguês), ambiente, enredo, levando-nos a classificá-la de crônica escrita em versos. O autor salienta o cotidiano da vida urbana que envolve as pessoas em um clima de violência e medo. Temos um rapaz que trabalha, fornecendo leite, alimento indispensável à saúde, e um proprietário de má índole que tudo faz para salvar a sua propriedade. Ele não pensa nos empregados, quer resolver apenas o seu lado. Salvar os seus bens. E o tiro, que era para um possível bandido acerta um inocente. Ficam na noite o leiteiro estendido e a garrafa de leite quebrada. Trabalhando com metáforas, Drummond fala da noite que representa o medo e um tempo de incompreensão e do dia, quando as esperanças se renovam. Através das cores, ele, simbolicamente, fala de um novo dia: mistura do branco do leite (lembrança do trabalho) com o vermelho do sangue (luta e morte). Apesar de saber sobre cada personagem, participar das suas ações e emoções (narrador onisciente), o autor se identifica muito com o leiteiro. Drummond, na sua sensibilidade de poeta, fala com segurança das pessoas simples e das coisas simples que o rodeiam no dia-a-dia. Preocupa-se com os problemas do mundo e com o ser humano brasileiro. Talvez, por isso, a grande intimidade do autor com o leiteiro. Apesar da noite cruel para o leiteiro, uma aurora surge, trazendo renovadas esperanças. Vida ingrata mas que desponta a cada amanhecer, segundo o poeta. 
 
Há pouco leite no país
é preciso entregá-lo cedo.
Há muita sede no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há no país uma legenda,
que ladrão se mata com tiro.
Então o moço que é leiteiro
de madrugada com sua lata
sai correndo e distribuindo
leite bom para gente ruim.
Sua lata, suas garrafas,
seus sapatos de borracha
vão dizendo aos homens no sono
que alguém acordou cedinho
e veio do último subúrbio
trazer o leite mais frio
e mais alvo da melhor vaca
para todos criarem força
na luta brava da cidade.
Na mão a garrafa branca
não tem tempo de dizer
as coisas que lhe atribuo
nem o moço leiteiro ignaro.
morador na Rua Namur,
empregado no entreposto
Com 21 anos de idade,
sabe lá o que seja impulso
de humana compreensão.
E já que tem pressa, o corpo
vai deixando à beira das casas
uma pequena mercadoria.
E como a porta dos fundos
também escondesse gente
que aspira ao pouco de leite
disponível em nosso tempo,
avancemos por esse beco,
peguemos o corredor,
depositemos o litro...
Sem fazer barulho, é claro,
que barulho nada resolve.
Meu leiteiro tão sutil
de passo maneiro e leve,
antes desliza que marcha.
É certo que algum rumor
sempre se faz: passo errado,
vaso de flor no caminho,
cão latindo por princípio,
ou um gato quizilento.
E há sempre um senhor que acorda,
resmunga e torna a dormir.
Mas este entrou em pânico
(ladrões infestam o bairro),
não quis saber de mais nada.
O revólver da gaveta
saltou para sua mão.
Ladrão? se pega com tiro.
Os tiros na madrugada
liquidaram meu leiteiro.
Se era noivo, se era virgem,
se era alegre, se era bom,
não sei,
é tarde para saber.
Mas o homem perdeu o sono
de todo, e foge pra rua.
Meu Deus, matei um inocente.
Bala que mata gatuno
também serve pra furtar
a vida de nosso irmão.
Quem quiser que chame médico,
polícia não bota a mão
neste filho de meu pai.
Está salva a propriedade.
A noite geral prossegue,
a manhã custa a chegar,
mas o leiteiro
estatelado, ao relento,
perdeu a pressa que tinha.
Da garrafa estilhaçada.
no ladrilho já sereno
escorre uma coisa espessa
que é leite, sangue... não sei
Por entre objetos confusos,
mal redimidos da noite,
duas cores se procuram,
suavemente se tocam,
amorosamente se enlaçam,
formando um terceiro tom
a que chamamos aurora.
 
 

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