domingo, 19 de junho de 2011

Sem Pauta: A soberba de Nico Alves

Fonte JB

por Mauro Santayana
A decadência de Nico Alves começou exatamente em uma sexta-feira de novembro, às três horas da tarde. Nesse dia e nessa hora, sendo o ano de 1947, caiu sobre sua fazenda temporal capaz de lavar os pecados de sete gerações dos Alves, engolidores de sesmarias, capitães de mato, donos de centenas de escravos por dois séculos, peritos no cruzamento dos cativos, para a melhoria do porte e lucrativas especializações. Mais tarde se fizeram zebuzeiros de ir à Índia e escolher, em Anantapur e Kanchipur, os melhores sementais que cruzaram os oceanos.
“Parece coisa de Deus” — murmuravam os vizinhos quando, depois do dilúvio de duas horas e meia, o sol apareceu para enxugar as terras roídas pelas enxurradas grossas como rios. Não era para menos: em todas as glebas em torno, as águas não haviam sido mais do que cerração refrescante, que as plantas, em seus primeiros brotos, agradeceram com viço. Mas dentro das duas léguas de lado da grande fazenda dos Alves, e principalmente sobre o chão arado e semeado, os grossos cordões desabaram em forma de pua, arrasando tudo, e abrindo os longos talhos das voçorocas.
As reses foram arrastadas dos pastos, morros abaixo, e jaziam, cobertas pela lama, no fundo dos barrocões rasgados pelas enxurradas. Não sobrou nada de coisa que podia render: até as bananeiras haviam sido arrancadas das covas baixas pelo vento.
Nico Alves percorreu sozinho os estragos; não quis que o vissem amaldiçoar Deus e os céus que lhe haviam caído em cima. Ao ver tombado o jequitibá secular, em cujo tronco estavam marcadas as iniciais de todos os primogênitos da linhagem, chorou.
As roupas se haviam esfiapado, e ele se enrolava em velhos sacos de aniagem
As roupas se haviam esfiapado, e ele se enrolava em velhos sacos de aniagem
Depois disso, foi a debandada. Os filhos procuraram ofícios urbanos. Acostumados ao mando, que não ao trabalho, não deram senão para miudíssimos negócios. As filhas, feias, de nada serviam. Andaram de damas de companhia de distantes primos, fizeram-se, no fim, empregadas domésticas nas cidades maiores. Nico ficou sozinho, amuado, vendendo lascas da terra para cobrir dívidas e despesas. Não plantou mais nada, mas se recusava a deixar o torrão familiar. Quando o grande território se reduziu a uma quarta e meia de beira de córrego, não havia sequer para o angu do cachorro. Depois de dois dias de jejum, e desprovidas de caça as redondezas, o animal, magro e triste, lambeu-lhe a mão e subiu a encosta, em busca de outro destino. Nico não se moveu, nem mesmo quando, na tronqueirinha, Sultão, também o último de uma linhagem de cachorros cabeçudos, companheira dos Alves, olhou para trás, rosnou baixo e abanou o rabo em despedida.
Um antigo camarada do tempo dos eitos férteis, sitiante por perto, foi o primeiro a se condoer de Nico, e a levar-lhe alguma coisa de comer. No início, vinha até a porta, agradecia o caldeirão. Pouco a pouco deixou de aparecer. Dizia ao portador que deixasse do lado de fora. As roupas se haviam esfiapado, e ele se enrolava em velhos sacos de aniagem.
O barraco fedia à distância — contavam os moleques que lhe levavam comida, enviada pelos vizinhos. Em torno, cresciam as ervas que se transformaram logo em matagal. Na cidade, orgulhosa em seu crescimento, o caso dos Alves era de obrigatória referência, como exemplo moral: “Tanto fizeram e aconteceram, para acabar desse jeito”.
Quinze anos depois da tempestade, chegou à cidade um novo delegado e recebeu a queixa de que Nico Alves estava roubando galinhas de seus vizinhos, alta noite, como se fosse lobo ou raposa. Um deles avisou que o abateria a tiros se o apanhasse em seu galinheiro. O policial chamou duas praças e foi ao casebre. Quando, depois de longa conversa persuasória, Nico saiu do tugúrio, o delegado se assustou. O homem tinha o corpo coberto de bernes, a calvície cheia de escrófulas, a barba imensa, encardida e hirsuta, os olhos opacos e parados. A Santa Casa e o Hospital da Prefeitura o recusaram.
O delegado colocou-o em um dos xadrezes, deu-lhe comida, encarregou o cabo de lhe arrancar os bernes e curar as feridas, com creolina e mercurocromo. Barbeado, de cabelo curto, foi recobrando pouco a pouco a razão. O policial proibiu que o visitassem; não queria que o constrangessem. O delegado retirou-o do xadrez e o manteve, ajudando no que podia, enquanto refazia o corpo dos estragos da miséria. Quando, semanas depois, passado o susto que durara três lustros, deu-se conta de tudo o que lhe ocorrera, procurou notícias dos filhos. De nenhum deles poderia esperar a restauração do orgulho familiar. E, quando lhe disseram que a mais nova de suas filhas, depois de enviuvar, juntara-se a um próspero e respeitável comerciante negro, sua soberba não resistiu. Estourou os miolos com o parabelum do sargento.

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