sábado, 9 de abril de 2011

MESTRE MESSIAS ESTÁ VIVO QUE SÓ EM NOSSOS CORAÇÕES ! AGORA É NÓS, MESTRE !
















um mestre violeiro que pinta e borda 

p o r   k e l l y   n a s c i m e n t o 


f o t o s   r i c a r do  b e l i e l 

Música, pintura, poesia. Cataguases, Juiz de Fora, Rio de Janeiro. Santa Teresa. Lugares, tons e sons que construíram a obra deliciosamente regional, mas também universal, de Messias dos Santos, verbete do Dicionário Cravo Albin da MPB. Ou melhor, Mestre Messias, como é carinhosamente saudado nas ladeiras de Santa. Do alto de seus 69 anos, o baluarte da tradição violeira, enfim, tem sua música registrada em CD, inspirado em memórias e causos de suas andanças artísticas que Carioquice esmiuça a seguir.
A história de Mestre Messias começa em 1942 nos grotões de Minas Gerais. Especificamente em Cataguases. No ambiente intrinsecamente rural, levava-se a vida no compasso do carro de boi. A família Santos – o pai, seu Augusto, a mãe, dona Rufina, e os cinco filhos – vivia do trabalho no campo, numa fazenda da região. E o som da viola caipira de seu Augusto preenchia as horas vagas. 

“Lembro-me de meu pai tocando por ocasião da Folia de Reis. O padre da paróquia do arraial convidava a Folia de Reis para tocar na igreja, na festa do padroeiro. É claro que toda a região ia, porque tinha a Folia. E nós, que éramos crianças, também íamos. Era bom comer torresmo, aipim. Já os grandes, além de comer o torresmo de barriga, bebiam cachaça”, lembra.

Quando seu Augusto morreu, Messias tinha 8 anos. Por questões de sobrevivência, a família se dispersou e o menino Messias ficou trabalhando sozinho em uma das fazendas locais. Alguns anos depois, migrou para a cidade, foi trabalhar numa fábrica. Por sorte, a tal fábrica tinha uma banda. E logo Messias se aproximou dos músicos, com quem passava as horas vagas. As partituras foram o caminho para que ele se interessasse não só em ler e escrevê-las, mas palavras. Até então, o garoto não tinha contato algum com mecanismos de aprendizado formal.

Nessa época, Messias aprendeu também a tocar violão, trompete e percussão. “Esses instrumentos eu aprendi tocando sozinho, porque lá não tinha professor. Era só ser curioso, pegar o instrumento e começar a trabalhar. Sempre chegava um músico e orientava: ‘faz desse jeito que é melhor’, aí acabava aprendendo”, recorda. Messias gosta de explicar que “veio para o Rio passando por Juiz de Fora”. Isso porque, de Cataguases, a próxima parada seria Juiz de Fora, onde viveu uma rotina musical intensa. “A gente fazia
música de baile, tocando na roça, na cidade e nos clubes. Éramos os músicos da cidade. Então, comecei também a ser o compositor da cidade. Fazia músicas que os estudantes gostavam de apresentar nos comícios pró-João Goulart e pelo movimento que ele fazia pela reforma agrária. Isso foi em 1961.” Na época, conquistou fãs, entre eles o estudante Itamar Franco.

O clima festivo tinha prazo de validade: abril de 1964. “O golpe militar, por acaso, saiu de Juiz de Fora, porque lá era a 4ª Região Militar. A ação para derrubar Jango partiu de lá. Daí em diante, todas aquelas músicas que fazíamos em solidariedade a esse movimento foram proibidas. Não se podia mais cantar nem tocar. Achei melhor passar a tocar contrabaixo e bateria, porque esses não eram instrumentos para a música de protesto.” A manobra, no entanto, não o safou de um inquérito policial. “Levaram-me para um 
interrogatório até que um sargento interveio: ‘onde já se viu um comunista negro!? Pode soltar o cara’”, recorda entre gargalhadas. “E pensar que em Juiz de Fora a gente nem sabia o que era comunismo. A gente pensava que comunismo era o João, do contrabaixo, beber cachaça como ele bebe. Isso é comunismo”, filosofa, entre mais gargalhadas. 


Do aprendizado na terra de São Sebastião

Com Juiz de Fora transpirando repressão, o jeito era pousar em outro galho. E foi assim que, em 1966, ele desembarca no Rio. Logo se junta a uma turma decisiva para a evolução da MPB. “Aqui eu fui viver com Nelson Sargento, Cartola... um pessoal que fazia samba. Convivia também com os músicos que trabalhavam à noite, em Copacabana. Estava sempre tocando, mas gostava mais do pessoal do samba, que tinha mais a ver comigo. Então comecei a misturar canções mineiras às cariocas.”

Entre um samba e uma canção mineira, Messias vai estudar. E não para mais. “Fiz o Primeiro Grau em um ano e passei. Diante disso, minha ex-mulher disse: faça o Segundo Grau, é fácil. Mais uma vez tive êxito. 
E foi a vez de a minha ex-sogra sugerir que eu fizesse o vestibular. Fiz e passei para História, na PUC. Fui estudar e aí que começou minha luta. Já tinha aquela bagagem de Juiz de Fora, de Cataguases, da música, dos bailes, da etnomúsica, das composições. Mas nunca tinha estado dentro de uma universidade para estudar.” Mesmo assim, ainda sobrava tempo para ir à Serrinha, em Madureira. “Ia ao terreiro de jongo da Vovó Joana, sempre com o Darcy.” 

Villa-lobos e a invenção da etnomúsica

Embrenhando-se na mata da etnomúsica, Messias foi parar na Escola de Música Villa-Lobos. Naturalmente, não passou despercebido. “Comecei a fazer jongo com Darcy, e uma série de apresentações com estudantes, e acabei dando aulas de música na Escola. Foi um deus nos acuda, era uma coisa muito grande, porque tive de criar uma cadeira sobre Etnomúsica, que substituiria a cadeira de Folclore. Criei e a Escola começou a entender, a fazer movimento sobre essa cadeira.”

A nova disciplina foi pensada assim: aproveitar a pedagogia da cadeira oficial, que era da formação em música erudita, para pôr os holofotes na música de tradição oral. Esse é o conceito de etnomúsica criado por Messias. “A partir da ideia da educação não formal, foram-se descobrindo esses universos que podiam ser mais ligados ao improviso e à criatividade do que a leitura decorada. Deu muito certo porque a gente mexia muito com os movimentos rítmicos. Por meio dos ritmos, achava-se o fio melódico, a postura instrumental, ia-se descobrindo. Essa cadeira acabou parando lá em Cabo Frio com o maestro Ângelo Bodega. Com essa metodologia da educação não formal, ele conseguiu ensinar muitas crianças. O projeto aprovado pelo governo federal já tem 17 anos.”

Tanta revolução começou a criar celeuma na escola. “Levei o Darcy para dar uma aula de atabaque de terreiro, já que todos os percussionistas foram estudar atabaque com ele. Aí a escola caiu de pau em cima de mim. O diretor de lá tinha me convidado para ajudá-lo, para ser o diretor adjunto da escola. Disseram: ‘puseram um negro na direção adjunta e a escola virou terreiro’”, ri.

Com tanta pressão, Messias acabou se afastando da escola e deu um novo rumo à vida: começou a pintar. Mais uma vez de forma autodidata. E não mais parou. Foi arriscando traços, aprimorando-se, jogando nas telas suas memórias de infância: bois, Folia de Reis, baile de roça, trabalhadores rurais etc. Mais que as memórias do artista, as pinturas são o resgate de um Brasil rural caído no esquecimento da maioria.

Nessa época também passa a cuidar de um casarão cultural em Santa Teresa, que acabaria tendo papel fundamental na valorização do jongo que a cidade testemunhou em fins da década de 1990 e anos 2000 adentro. “Fiz um trabalho com as crianças e os adolescentes, comecei a criar o centro de estudo de música, que passou a se chamar Núcleo Experimental de Música, onde hoje é o Centro Cultural Laurinda Santos Lobo.

Convidei o Darcy para vir para cá trabalhar jongo com os estudantes. Foi assim que o jongo veio para Santa Teresa. Levava para ele os estudantes de corda e percussão e como um mestre de percussão da melhor qualidade, podia trabalhar com o grupo, inclusive a parte vocal. Foi assim que despontaram a Luciane Menezes, o Marcos André, entre outros. Foram os estudantes que foram até a Serrinha, em Madureira”, lista.



O violeiro retratado

Em mais de 50 anos de estrada, Mestre Messias teve composições suas gravadas por nomes como Elza Soares, Leny Andrade e Rosinha de Valença. Nunca por ele mesmo. Até que, em 2000, deparou-se com um flautista francês, Bertrand Doussain, e um produtor alemão, Michael Sexauer. A dupla decidiu começar a gravar Messias cantando. Com o material que tinham em mãos, logo se empolgaram em transformar aquilo num CD, que só se materializa agora em 2011. Assim começa a surgir o que seria “Retrato de um violeiro”. “Messias tem um carisma único. No palco, ele fascina.”, tieta Sexauer.

“Estava querendo ir embora do Rio, quando surgiu o Michael dizendo que tinha um estúdio e uma produtora. Como havia essas canções que eu já estava esquecendo, que só existiam na memória, achei por bem gravá-las para registro. Então o CD só tem canções que eu não cantava há muito tempo”, diz Messias.

À missão foram se aglutinando amigos de Messias, e o disco traz as participações de Robertinho Silva, Carlos Negreiros, Yassir Chedeak, Tomás Improta e muitos outros. “Nossa preocupação foi fazer um disco que representasse o Messias autêntico. A ideia era traduzir em acordes essa simplicidade sofisticada que ele tem. Optamos, então, por um álbum 100% acústico. Também nos preocupamos com o ritmo do disco, que traz canções da década de 1970, quando o mundo era efetivamente mais lento. Tentamos resgatar essa atmosfera”, explica Sexauer.

As 14 canções do álbum trazem influências de Minas e do Rio. Assim, o samba “Negro carioca” homenageia Cartola e fala do cotidiano da favela de então. “Naquela época, os barracos eram de madeira, o fogão era fogareiro e as panelas eram latas de gordura de coco Carioca, que também serviam para batucar. E o samba nascia assim”, teoriza.

Em “Pra nós todo”, é a vez de homenagear João Gilberto. “O pessoal da Bossa Nova gostava de cantar o amor. Era aquela coisa de um amor, um sorriso, uma flor. Aí fiz essa canção, estilo bossa nova.”

As coisas do Rio também inspiram a faixa “São Sebastião”, em que o padroeiro da Cidade Maravilhosa é apresentado sob a ótica do sincretismo. “Comparo o santo a Oxóssi. E falo um pouco da tradição negra também. Quem escuta me pergunta: como você conseguiu ligar o tronco de São Sebastião ao tronco dos negros da colônia? E respondo: tronco é tronco, rapaz!”, diverte-se. E Minas entra em temas como “Cotidiano”, que foi proibida pelos militares; na canção caipira “O boiadeiro”; na rural “Roda de milho”, e por aí vai.

No fundo, o CD representa a realização de um sonho antigo de Mestre Messias. Não à toa, quando perguntado sobre o que mais gosta de fazer no momento, responde, sem titubear: 
“Ouvir essas músicas do CD e ficar refletindo.” Em tempo: 

“Retratos de um violeiro” estará disponível para venda no site www.mix.art.br/mestremessias, logo depois do carnaval.

A viola e o Rio

Viola de arame e violão são especialidades de Mestre Messias. “A viola é um instrumento da minha família, de Minas Gerais. Meu pai era mestre de Folia de Reis, violeiro, calangueiro. Tocar para a gente era uma tradição.” 

Messias ajuda a entender um pouco como os instrumentos se relacionam com a história do Rio, a partir do século XVI. “A viola é um instrumento que foi introduzido no Brasil colonial pelos jesuítas. O intuito era catequizar os índios, pela música. Mas parece que eles não gostaram da viola. Foram os lavradores, que vieram para trabalhar a agricultura de subsistência, que começaram a usar o instrumento que se foi tornando profundamente rural”, explica.

O instrumento – que é acarinhado com um amplo projeto ainda sem patrocínio pelo ICCA provendo cursos de violas e até uma Orquestra Fluminense de Violeiros – foi chegando a cada região brasileira, com suas peculiaridades. “Cada estado tem uma natureza de viola, nenhuma é do mesmo jeito. Em Minhas Gerais ela tem uma característica, que é a que eu toco; em Mato Grosso é a viola de cocho, de arame. No Rio Grande do Sul, difere pelo jeito de dedilhar, de tocar. No Rio ela não se expressou muito porque aqui o forte eram as modinhas, não moda de viola, era outro estilo de canção, tipo valsa. Eu até compus uma. O mais interessante é que aqui no Rio esse processo iria criar gente como João Pernambuco, Villa-Lobos, violões de alto nível”, ensina.

Outra particularidade do violão tocado no Rio se deve à influência dos sambistas. “O pessoal do samba começou a usar o violão para harmonizar o samba cantado. E assim foi nascendo esse violão popular, que depois virou bossa nova. Mas para tocar o violão popular é preciso conhecer bem a técnica erudita”, dá a dica. Para aprofundar o tema, Messias pretende organizar um movimento de viola na cidade do Rio, com um calendário fixo de concertos.

Nota da Redação: no dia 26 de fevereiro, durante o fechamento desta edição de Carioquice, Mestre Messias faleceu, em sua casa, em Santa Teresa.

Fonte: Carioquice
Buscado no Mauricio Porto

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