quinta-feira, 31 de março de 2011

O homem de Ferro e de Flor

3ª Blogagem Coletiva pela Abertura dos Arquivos Secretos da Ditadura Militar

 

Por favor, vejam o vídeo deste post até o seu fim, 
as suas 3 partes.
É longo, mas merece ser divulgado. =)

Gregório Bezerra veio ao mundo no pior ano possível. A terra rachada de aridez mostrava a terrível seca que amofinava o leite de todos os animais, do cabrito, da vaca, do ser humano. Logo quando chegou ao mundo, a sua mãe perambulava pelas estradas, em meio à vegetação da caatinga, sem poder ver o verde de uma simples folha, ou da esperança.
Após perder seus pais, ainda menino de calças curtas, foi criança de rua. O mundo quase apenas lhe reservou desgraças. O mundo fez tudo para retirar a sua gentileza, mas nunca conseguiu o vencer. Sua fé no ser humano, seu caráter inabalável, fazem dele um mito, um herói, um exemplo a ser seguido, faz dizer com justiça que ele é um homem de ferro.
Esteve em todas as lutas pela democracia no Brasil ocorridas no século passado. Levantou armas todas as vezes que uma ditadura se instaurou no Brasil. Organizou o povo mais pobre para lutar com a própria vida pela democracia, e por seus direitos. As pessoas que ele defendia, os trabalhadores rurais, tinham condições de vida e direitos tão precários, que na atualidade o Ministério do Trabalho ao encontrar um caso equivalente o classificaria como situação análoga à escravidão.
Ensinou a quem vivia em condições equivalentes à escravidão que eles eram seres humanos, e tinham direitos iguais a todos os outros. Lutou pelos direitos de igualdade entre gêneros, pretendia que uma mulher camponesa recebesse a mesma quantia de salário que um homem, desde a década de 30, até o dia de sua morte.
Foi preso por motivos políticos por todas as ditaduras, ficando por 22 anos em cárcere. Dividiu a cela com Luís Carlos Prestes, e até mesmo com o cangaceiro Antônio Silvino. Viveu exilado na União Soviética, e sofreu preconceito até de alguns de seus companheiros de militância política, que lhe negavam o microfone por ele ser um homem simples do povo. Só teve a oportunidade de se alfabetizar quando tinha 25 anos.
Homem sábio, inteligente, era pacato e gentil, inspirava confiança sendo seguido pelas massas. Um homem de flor, que na vigência da democracia foi eleito o deputado federal mais votado no estado de Pernambuco. Na prisão recebia cartas de amor de mulheres da sociedade, que eram todas rasgadas por sua advogada. Foi fiel por toda a sua vida à sua esposa, que conheceu na vida de camponês.
O golpe de 1964 o torturou de maneira brutal, em praça pública, tudo transmitido pela televisão, para toda a cidade. Ele, à época um homem já de idade, foi arrastado pelas ruas do bairro de Casa Forte com uma corda amarrada em seu pescoço. Seus pés foram banhados em fluído de bateria de automóvel, ficaram em carne viva. Ao ser torturado, só disse algumas poucas frases em defesa de sua dignidade, como após ser xingado de filho de uma puta por um homem de fardas: “Coronel, a minha mãe era uma mulher honrada!”.
O autor deste texto não viveu esta história, nem era nascido. Mas a escuta desde a infância pois os seus avôs, seus tios e seu pai moravam na praça de Casa Forte no dia em que ele foi torturado. Quando os militares começaram a desgraçar Gregório Bezerra, a avó do autor buscou os filhos no colégio e a família se trancou em casa, desligou a televisão. Ouvia-se pelas grades da casa os desesperados gritos dos populares: “Vão matar o homem, é uma desgraça!”.
Quando lhe foi ofertada a liberdade do cárcere, a recusou em sua grandiosidade, em razão de divergências com o partido comunista. Apenas aceitou ser trocado pelo embaixador americano para não prejudicar outros prisioneiros. Faleceu em 1983 sem conseguir ver a democracia ser restabelecida.
Gregório Bezerra nunca teria justiça, caso isso dependesse do Supremo Tribunal Federal, que constrange a todos os brasileiros com a sua decisão sobre a lei da anistia. Em razão deste lamentável julgamento, o Brasil acaba de receber a sua primeira condenação pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, que ordena a investigação de todos os crimes contra a humanidade cometidos pela Ditadura Militar brasileira.
Muitos brasileiros lutam pelo estabelecimento de justiça, para que os arquivos de crimes cometidos pelos militares em seus vinte e quatro anos de sombras não sejam escondidos do povo brasileiro, para que os desumanos que torturaram, mataram e fizeram pessoas desaparecer não fiquem impunes.
Um viva a todos que lutaram contra a Ditadura Militar brasileira. Esta luta é de todos que apreciam a democracia, que valorizam a vida. Um viva à Gregório Bezerra, o homem feito de ferro e de flor:



Entrevista foi realizada quando Gregório Bezerra completara 76 anos no exílio. Documentário de Luiz Alberto Sanz, Lars Safstrom, Leonardo Cespedes e Staffan Lindqvist.

"Mas existe nesta terra
muito homem de valor
que é bravo sem matar gente
mas não teme o matador,
que gosta da sua gente
e que luta a seu favor,
como Gregório Bezerra,
feito de ferro e de flor".
Ferreira Gullar
"Tantos anos de prisão
Cercearam a liberdade
Deste leão do Norte,
A fraternidade
Mostra os direitos humanos
Com oitenta e tantos anos
Esta claro como a verdade".
Lourival Batista
Poeta Popular - São José do Egito








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quarta-feira, 30 de março de 2011

Frase da hora

 Em 1974 o governo dos Estados Unidos perguntou aos índios se os americanos deveriam sair do Vietnã. Eles responderam que sim... e dos Estados Unidos também.


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No inferno de Fukushima

Ao procurar o nome Takashi Hirose no Wikipedia, encontramos a seguinte definição:
Takashi "Taka" Hirose, nascido 28 de Julho de 1967, Mizuho, Japão) é um musico japonês que actualmente toca o baixo na banda rock Feeder.
E uma nota: 
(Takashi Hirose é também o nome dum activista anti-nuclear)

Interessante.
Gosto do rock, e muito. Mas acho engraçado conceder espaço a um fulano que toca numa pouca conhecida banda do Gales, com tanto de biografia pessoal, e apenas uma linha para quem já escreveu uma prateleira de livros acerca dum assunto tão delicado como o nuclear.

É uma questão de prioridade, sem dúvida.

Takashi Hirose é bem conhecido no seu País, assim como reconhecida é a competência dele no sector nuclear e militar-industrial. Por isso foi entrevistado pela Asashi New Star, no dia 17 de Março.

A seguir, a tradução do encontro.
Vale a pena ler.


Takashi Hirose
O incidente da central nuclear de Fukushima 

Transmitido por: NewStar Asahi, 17 de Março, 20:00 h
Entrevistadores: Yoh Sen'ei e Mari Maeda 

Yoh: Hoje muitas pessoas vêm os fluxos de água acima e abaixo dos reatores, mas é eficaz?

Hirose:. . . Se desejarmos esfriar um reactor com água, é necessário fazer circular a água no interior e levar para longe o calor, caso contrário não tem sentido. Então a única solução é restabelecer a energia eléctrica, caso contrário é como derramar água sobre a lava.

Yoh: Re-conectar a alimentação, isso é,  reiniciar o sistema de arrefecimento?

Hirose: Sim. O acidente foi causado pelo facto de que o tsunami inundou os geradores de emergência e destruído os reservatórios de combustível. Sem corrigir isso, não há forma de remediar o incidente.

Yoh: A TEPCO [Tokyo Electric Power Company, proprietária/geradora da central nuclear, NDT] diz que esta noite é suposto conectar uma linha de alta tensão.

Hirose: Sim, há alguma esperança. Mas o que é preocupante é que um reactor nuclear não é o que podemos observar nas estilizadas [mostra a imagem dum reactor, tal como as imagens utilizadas nas televisões].
Esta é apenas uma representação. Aqui está o que fica abaixo do recipiente dum reactor [mostra uma foto]. Esta é a parte terminal do reactor.

Vejam. Esta é uma floresta de alavancas de comutação, cabos e tubos. Na televisão vemos estes pseudo-especialistas que fornecem explicações simples, mas os docentes não sabem nada. Só os engenheiros sabem.

Este é o lugar onde a água foi derramada. Este labirinto de tubos é suficiente para torna tontas as pessoas. A estrutura é demasiada complexa. Desde uma semana estamos a despejar água. É água salgada, certo? Despejas água salgada sobre uma placa quente e o que achas que acontece? Obtemos sal. O sal entrará nas válvulas e irá obstruí-las. Não poderão mexer-se. É isso que está a acontecer.

Então eu não posso acreditar que seja apenas uma simples questão de ligar a eletricidade para que a água possa começar a circular. Eu acho que qualquer engenheiro com um mínimo de fantasia é capaz de compreende-lo. Tomam um sistema incrivelmente complexo como este e, em seguida, a água é derramar a partir de um helicóptero, talvez eles tenham alguma idéia de como isso poderia funcionar, mas eu simplesmente não entendo.

Yoh: Vão ser precisas 1.300 toneladas de água para encher as http://informacaoincorrecta.blogspot.com/2011/03/no-inferno-de-fukushima.html

Hirose: Em princípio não pode. Mesmo quando está em boa forma, um reactor exige uma vigilância constante para manter a temperatura nos limites. Agora, há uma confusão, e quando penar acerca dos 50 trabalhadores que ai ficaram sinto vontade de chorar. Presumo que tenham sido expostos a grandes quantidades de radiação, e que concordaram em enfrentar a morte para ficar lá. E quanto tempo podem durar? Fisicamente, quero dizer. Até agora, a situação levou a isso.

Quando vejo estas crónicas na televisão, gostaria de dizer-lhes: "Se isto é o que você pensa, então vá lá e faça isso!" Realmente, dizem disparates, tentando tranquilizar todos, tentando evitar o pânico. O que precisamos agora é um medo razoável. Porque a situação chegou ao ponto onde o perigo é real.

Se eu fosse o Primeiro Ministro Kan, ordenaria de fazer o que fez a União Soviética, quando explodiu o reactor de Chernobyl, a solução do sarcófago, enterrando tudo sob cimento, colocar a trabalhar as fábricas de cimento no Japão e descarregar cimento do céu. Porque temos de considerar o caso pior.

Porquê? Porque em Fukushima há Daiichi com seis reactores e Daini com quatro reactores, um total de dez reactores. Se até mesmo um deles degenera no pior dos casos, os trabalhadores devem ser retirados do local ou permanecer e morrer.

Assim, por exemplo, se um reactor em Daiichi colapsar, com os outros cinco serão apenas uma questão de tempo. Não podemos saber em que ordem entrarão em colapso, mas definitivamente acontecerá com todos. E se isso acontecer, Daini não está muito longe, então provavelmente os reactores cederão . Por que suponho que os trabalhadores não podem ficar lá.

Estou falando do caso pior, mas a probabilidade não é baixa. Esta é a ameaça que o mundo está a observar.

Só no Japão está a ser escondida. Como sabemos, dos seis reactores de Daiichi, quatro estão em estado de crise. Assim, mesmo que tudo corra bem e a circulação de água for restabelecida num deles, os outros três ainda podem ceder. Mas há quatro em crise, e imaginar a reparação em 100 por cento de todos os quatro, sinto muito, mas estou pessimista.

Se assim for, para salvar o povo, temos de pensar em alguma maneira de reduzir a dispersão da radiação até o valor mais baixo possível. Não com as bombas de água, não com água pulverizada sobre um deserto. Devemos assumir que todos os seis reactores possam ceder, e a possibilidade que isso aconteça não é baixa.
Todos sabemos quanto tempo leva um tufão a passar para o Japão, cerca de uma semana. Ou seja, com uma velocidade do vento de dois metros por segundo, poderiam ser suficiente cinco dias para cobrir de radiação todo o Japão. Não estamos a falar apenas de distâncias de 20, 30 ou 100 quilómetros.
Isso significa, é claro, Tóquio, Osaka. Isso é quanto depressa uma nuvem radioativa poderia espalhar-se.

Claro que depende das condições climáticas, não podemos saber com antecedência como a radiação irá espalhar-se. Seria bom se o vento soprasse em direção ao mar, mas não pode fazê-lo para sempre. Dois dias atrás, no dia 15, o vento soprou para Tóquio. Eis como pode acontecer ...

Yoh: Todos os dias é medida a radioactividade pelo governo local. Todas as estações de televisão dizem que, apesar da radiação aumentar, ainda não é tão o suficiente para representar um perigo para a saúde. Fazem a comparação com uma folha de raio-X do estômago ou, por exemplo, uma tomografia computadorizada. Qual é a verdade?

Hirose: Ontem, por exemplo. Em torno da estação de Fukushima Daiichi foram medidos 400 millisieverts, numa hora. Com este valor [o chefe de equipa] Edan admitiu pela primeira vez que havia um perigo para a saúde, mas não explicou o sentido. Todos os media têm culpa nisso, acho. Dizem coisas estúpidas, por exemplo, como o facto de nós estarmos expostos à radiação o tempo todo das nossas vidas, e que recebemos também a radiação do espaço. Mas este é um millisievert por ano.

Um ano tem 365 dias, um dia tem 24 horas, multiplicando vezes 365 por 24, obtemos 8760. Multiplicando isso vezes os Millisievert 400, obtemos 3,5 milhões de vezes a dose normal. Isto chama-se dose segura? E qual media tem relatado isso? Nenhum. Fazem a comparação com uma tomografia computadorizada, que é muito rápida, não tem nada a ver com o que estamos a falar.

A razão pela qual a radioatividade pode ser medida é há material radioactivo que escapa..

O que é perigoso é quando o material entra no corpo e irradia a partir de dentro. Estes especialistas do sector vão na televisão e que dizem? Dizem que ao afastar-se, as radiações são reduzidas na proporção inversa do quadrado da distância.

Eu quero afirmar o contrário. A exposição interna ocorre quando o material radioativo é ingerido pelo corpo. O que acontece? Dizemos que há uma partícula nuclear a um metro de distância. É respirada e ficar dentro do nosso corpo, e a distância entre nós e ela é agora de mícron. Um medidor é de 1.000 milímetros, um mícron é um milésimo de milímetro. Isto é mil vezes mil: mil ao quadrado. Este é o verdadeiro significado da "proporção inversa ao quadrado da distância". A exposição à radiação é aumentada por um factor de um trilhão.

Inspirar até a menor partícula, este é o perigo.

Yoh: Então fazer a comparação com raios-X e tomografia computadorizada não tem nenhum significado. Porque o material radioativo pode ser inalado.

Hirose: Certo. Quando entra no corpo, não podemos dizer para onde vai. O perigo é maior para as mulheres, especialmente mulheres grávidas e crianças pequenas. Agora estão a falar de iodo e césio, mas isso é apenas parte, não estão a usar as ferramentas adequadas de deteção. O que eles chamam de monitoramento é só medir a quantidade de radiação no ar. As ferramentas não comem. O que medem não tem qualquer ligação com a quantidade de material radioativo.

Yoh: Então, os danos causados ​​por raios radioativos e danos decorrentes de matérias radioactivas não são os mesmos.

Hirose: Se perguntarem se houver raios radioativos da central nuclear de Fukushima aqui, neste estudo, a resposta é não. Mas as partículas radioativas são trazidas aqui pelo ar. Quando o núcleo começar a derreter, no interior os elementos tais como iodo tornam-se gás. Sobe até o topo, por isso, se há brechas sai. para fora.

Yoh: Existe uma forma de detecta-lo?

Hirose: Tem sido dito por um jornalista que agora Tepco nem sequer é capaz de realizar um acompanhamento regular. Tomam medidas apenas ocasionais que tornam-se a base para as declarações de Edano. Deveriam ser medidas duma forma constante, mas são incapazes de faze-lo. E deveria ser investigado o que está a sair e a quantidade. Isso requer sofisticados instrumentos de medição.

Não pode ser feito mantendo um posto de controle simples. Nem chega para medir o nível de radiação do ar. Passar com um carro, tomar uma medida, acima, abaixo, não é esse o ponto. Precisamos saber que tipo de materiais radioativos estão a sair e para onde vão e actualmente não têm um sistema para faze-lo.


Buscado no Informações Incorrecta





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terça-feira, 29 de março de 2011

"Precisamos rever modelo agrícola atual", afirma Gilmar

Via  MST

Roldão Arruda
De O Estado de S.Paulo

Gilmar Mauro, que faz parte da coordenação nacional do Movimento dos Sem Terra e é apontado como um dos principais pensadores da organização, conversou com a reportagem do Estado durante cerca de uma hora sobre os problemas que organização enfrenta atualmente - da dificuldade de mobilização de pessoas na periferia das cidades ao avanço do agronegócio, que disputa as mesmas terras reivindicadas pelo movimento.
O MST, criado em 1979, com uma pequena estrutura e empurrado pela Igreja Católica, hoje mobiliza cerca de 100 mil famílias e acampamentos e outras 300 mil em assentamentos. Possui uma estrutura que se espalhada por quase mil municípios em todas as regiões do País.
No momento, a maior preocupação de seus líderes é promover um grande debate nacional sobre a estrutura agrária do País, procurando sensibilizar a sociedade a partir do tema dos agrotóxicos.
Nas próximas páginas, os principais trechos da conversa:A que atribui a redução dos acampamentos? Isso está ligado ao mercado de trabalho?
Sim. A realidade socioeconômica do País mudou. Houve um processo acentuado de geração de empregos nos últimos oito anos. A construção civil está bombando, mobilizando trabalhadores que costumo chamar, brincando, de primos pobres da cidade. O cara da construção é o ex-camponês, que, do ponto de vista da educação formal, está situado num grau menor que o da maior parte da sociedade, e que, até algum tempo atrás, era o mais interessado na volta ao campo, na reforma agrária. Pensava nisso como uma forma de sobrevivência.
Na sua avaliação, esse quadro é conjuntural ou veio para ficar?
Não sei até onde dura isso, porque economia é processo, ascenso e crise. O capitalismo ainda não saiu do período de crise internacional e é provável que o avanço brasileiro encontre limites uma hora dessa. Mas ainda tem potencial para crescer, na construção civil, na agricultura, tem muita terra para ser explorada, potencial em várias áreas que vão sustentar o crescimento econômico por algum tempo no Brasil. Isso vai influenciar as condições de trabalho e de emprego.
O Bolsa Família também dificulta a mobilização de pessoas para a ocupação de terras?
Muitas famílias encontram no programa um complemento de renda e a possibilidade de ir sobrevivendo voltar para a terra e sem ver a reforma agrária uma alternativa.
Essas mudanças representam o esvaziamento da bandeira da reforma?
Não. Esse é o terceiro e mais importante aspecto da questão sobre a qual estamos falando. A reforma agrária precisa de fato ser ressignificada, com um debate político amplo que envolva toda a sociedade. Se continuarmos com essa lógica de exportação de commodities, com o uso intensivo de agrotóxicos, em menos de 50 anos teremos contaminado todos nossos rios, lagos, terra. É o que desejamos? Queremos consumir alimentos contaminados? Se a sociedade responder sim, então não há espaço para reforma. Se disser não, precisamos rever o modelo agrícola atual.
Essa lógica à qual você se refere é a que garante saldos na balança comercial.
Evidentemente. A agricultura cumpre esse papel há muito tempo. No entanto, estamos exaurindo nossos recursos naturais e contaminando a água. Esse não é um debate dos sem-terra, mas da sociedade. Foi por isso que Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) puxou a Campanha da Fraternidade deste ano para o tema da contaminação do solo e da água. No segundo semestre nós queremos fazer em São Paulo um grande seminário para discutir a questão do agrotóxico e a reforma agrária.
O pequeno agricultor também usa agrotóxico.
Usa. Por isso falamos em mudança de modelo. Não estamos dizendo que somos os bonzinhos e bonitinhos da história. É preciso mudar toda a formação cultural. Todos os quadros técnicos que saem hoje das universidades foram formados dentro do pacote da chamada revolução verde: vão sempre recomendar o uso de veneno para a solução de qualquer problema. Dias atrás, durante uma reunião com o ministro Gilberto Carvalho (Secretaria Geral)eu disse que a ele que precisamos mudar a formação universitária, criar quadros com mentalidade diferente. Se o Estado não pensar nisso, se Embrapa não mudar a direção da pesquisa tecnológica, se não fizermos esse debate político e de conscientização na sociedade, estamos fritos. As empresas vão continuar ganhando muito dinheiro e destruindo tudo.
Essa ênfase na questão ambiental não pode levar o MST a ser confundido com uma ONG? Isso não o distancia da perspectiva política?
Mas isso é altamente político. Porque implica uma mudança ampla, até na estrutura do poder. A lógica do capital nunca vai permitir isso, porque é a lógica do lucro, de produzir para ganhar e ganhar e ganhar... Quando a indústria automobilística vende dois milhões de carros, ela começa a pensar em vender dez milhões, em convencer cada pessoa a ter dois carros. É a lógica do sistema
Começamos a falar em mudança do sistema.
Sim. Mudança do sistema. Mudança da lógica. Até porque, se não mudarmos num curto espaço de tempo, teremos muitos problemas. Olhe as consequências que estamos assistindo ao nosso redor, as tragédias.
Não acha que poderia ser uma mudança dentro do capitalismo? O chamado capitalismo responsável proposto pela Marina Silva?
Não acredito. O capitalismo não resolve nosso problema, porque a essência dele é o lucro, a concorrência brutal, a exploração da força de trabalho e dos recursos da natureza. Se o capitalista pensa em mais lucro, a classe trabalhadora pensa em vender a força de trabalho pelo preço maior para comprar mais coisas também. Subjetivamente pensamos da mesma forma.
Essa forma de pensar a questão agrária de forma mais ampla surgiu agora?
Já no seu surgimento o MST tinha a visão de que para realizar a reforma agrária no Brasil seria preciso conjugar a luta pela terra com outras lutas na sociedade. A realização da reforma dependia de mudanças na estrutura de poder no País - porque se trata uma medida estrutural e estruturante contundente, destinada a alterar uma situação histórica secular.
A ação do MST nunca esteve restrita à luta pela terra?
A conquista de um assentamento é uma conquista parcial. É preciso desenvolver processos organizativos que avancem além da luta pela terra. A conquista de um lote não significa a resolução do problema da família, porque ela ainda necessita de crédito, casa, infraestrutura, estímulo. Por outro lado, a organização que agrega assentados e acampados precisa crescer, adquirir força, capacidade para levar adiante a proposta da reforma. É por isso que os assentamentos continuam vinculados ao MST. É por isso que investimos tanto na educação.
Vocês tem insistido muito na formação de professores, advogados, agrônomos economistas, entre outros profissionais, que sejam ligados ao movimento.
Para mudar uma sociedade, educação e cultura são fundamentais. Desde o início do MST nós investimos na juventude, na formação de quadros e de lideranças.
Não correm o risco de adentrarem os grandes debates políticos e se esquecerem de suas bases?
Uma organização só existe para responder a determinadas necessidades de suas bases. Por isso o MST vai continuar fazendo mobilizações para atender assentados e acampados. Evidentemente, porém, não basta responder às necessidades mais prementes. É preciso fazer desse processo de luta um processo de politização.
Vão debater os agrotóxicos e ao mesmo tempo continuar mobilizando gente para ocupações de terra?
Sim. Queremos chamar a atenção da sociedade para o debate sobre o uso dos nossos recursos naturais e cuidar da base. Tem gente querendo terra? Ir para a luta? Então vamos organizar, fazer ocupação, mas sem a ilusão, insisto, de que essas ocupações vão resolver o problema da reforma agrária.
O número de famílias assentadas e ligadas ao movimento tende a aumentar cada vez mais, o que significa mais trabalho para vocês.
Temos hoje, em bases do MST, mais de 300 mil famílias. A maioria vive de forma precária, o que significa que precisamos lutar para sejam instaladas agroindústrias nos assentamentos, para agregar valor aos produtos e aumentar a renda. Precisamos avançar na área de habitação, de infraestrutura, mudar a lógica de produção. A meta para o próximo período é procurar vincular os assentamentos às comunidades, às cidades onde estão instalados, buscando uma interação e o debate sobre o tipo de produção que se deseja ali. Queremos politizar esse tema e construir alianças na perspectiva do poder popular.Temos assentamentos espalhados por mais de mil municípios.
A presidente Dilma Rousseff não tem falado em novos assentamentos. A ênfase agora parece ser na melhoria dos que já existem.
Isso está de acordo com o que pensamos. Temos assentamentos precários em todo o Brasil. Não se trata de um problema das famílias, mas da falta de investimento. O governo contabiliza como beneficiárias da reforma agrária pessoas que são jogadas em cima de uma terra pobre, exaurida, e em locais sem infraestrutura. A primeira tarefa seria recuperar o solo. O investimento nos assentamentos não implica, porém, em deixar de fazer desapropriações. São cem mil famílias acampadas. Algumas com cinco, sete, treze anos de acampamento.
Além do Bolsa Família, da elevação dos níveis de emprego, o MST também enfrenta o avanço do capitalismo no campo. Os investimentos ficam maiores, assim como a cobrança, da parte dos empresários, de segurança jurídica.
Isso é levado em conta, sem dúvida. Por que os estrangeiros estão comprando aqui? Porque temos terra boa, sol e água em abundância. Um pé de pinus demora quinze anos para chegar ao ponto de corte nos Países Baixos. Na Bahia o problema está resolvido em seis ou sete anos. O retorno do investimento é muito alto. As mesmas áreas que disputávamos para a reforma agrária estão sendo disputadas pelo agronegócio e o grande capital. Desde o congresso que realizamos em 2007 sabemos que a nossa grande disputa é com o agronegócio e o grande capital. Estamos perdendo. Eles avançam sobretudo com o apoio do governo que garante quase todas as obras de infraestrutura que necessitam.
Com tanto assentado, tanta negociação com o governo, investimento em escolas, o MST não corre o risco de ficar cada vez mais institucionalizado, petrificado?
A massa é grande e os operários são poucos. Sempre ocorre um processo de institucionalização em qualquer organização social. Mesmo que você não seja institucionalizado formalmente, o processo é meio natural. O importante é não perder o foco na base. Se um dia o MST perder de vista a questão da terra, então passa a ser ONG.
O MST não poderia virar um partido?
Não faria sentido. Temos aliados no PT , PSOL, PMDB, PDT, PSB, PC do B, PCB e outros. Nosso movimento é de luta pela reforma agrária e ele não pode perder essa característica. A transformação do MST num partido seria um erro e a nossa derrota.

Buscado no Gilson Sampaio


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LIVROS EM PDF

LIVROS EM PDF 

Uma bela biblioteca digital, desenvolvida em software livre, mas que está prestes a ser desativada por falta de acessos. Imaginem um lugar onde você pode gratuitamente:

·Ver as grandes pinturas de Leonardo Da Vinci ;
· escutar músicas em MP3 de alta qualidade;
· Ler obras de Machado de AssisOu a Divina Comédia;
· ter acesso às melhores historinhas infantis e vídeos da TV ESCOLA
· e muito mais....

Esse lugar existe! 

O Ministério da Educação disponibiliza tudo isso,basta acessar o site: www.dominiopublico.gov.br 

Só de literatura portuguesa são 732 obras!
Estamos em vias de perder tudo isso, pois vão desativar o projeto por desuso, já que o número de acesso é muito pequeno.

Vamos tentar reverter esta situação, divulgando e incentivando amigos, parentes e conhecidos, a utilizarem essa fantástica ferramenta de disseminação da cultura e do gosto pela leitura.

Divulgue para o máximo de pessoas!

Recebi por E-mail de Tamiramis Dias



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domingo, 27 de março de 2011

Sob a sombra do nazismo: a história de Nicklas Frank, filho do 'açougueiro da Polônia'

"Eu me masturbava todo ano na noite de 16 de outubro, porque nesse dia, em 1946, executaram meu pai [Hans Frank] nos julgamentos de Nuremberg. Imaginava suas últimas horas na cela, a chegada dos guardas, o trajeto até a forca e sua morte - o momento em que eu atingia o orgasmo", contou ao Opera Mundi Niklas Frank, de 71 anos, filho do governador nazista da Polônia responsável pela morte de milhões de pessoas em campos de extermínio. Ele é o único descendente direto de líderes nazistas - à exceção do filho do secretário de Hitler, Martin Bormann – que denunciou os crimes de sua família.

Niklas fez isso por meio de um livro que publicou em 1987, provocando uma tormenta no país. Não satisfeito, contudo, desde então percorre cada canto da Alemanha dando palestras em colégios e universidades para evitar que os jovens ingressem em grupos neonazistas, combinando isso com o trabalho de jornalista na prestigiada revista alemã Stern. Sua última escala: o pitoresco povoado de Nagold, no sudoeste da Alemanha, antigo reduto nazista perto de um campo de concentração, onde nos encontramos.

Eram sete e meia da manhã e o dia estava cinzento e gelado, com uma densa neblina. O sol acabava de nascer e o único ruído era o de nossos passos avançando entre lápides cobertas por uma fina camada de neve. À nossa frente, erguia-se uma bela igreja do ano 700, lotada por mais de uma centena de crianças de 15 e 16 anos de uma escola local, curiosas com a chegada do estranho visitante.


Enquanto caminhávamos, Niklas comentou como, nos anos 1990, muitos saíam horrorizados quando ele começava as palestras com a execução de seu pai e sua masturbação – "A linguagem que uso é muito forte" –, mas acrescentou que tudo isso mudou. "Os estudantes agora escutam o que digo e costumamos ter depois uma boa discussão sobre como enfrentar os crimes do Terceiro Reich. Mas sempre fico surpreso quando me perguntam se o livro me ajudou a me libertar. Respondo: 'Por que eu? Por acaso vocês se libertaram do passado nazista? Como se o problema fosse só meu'", afirmou, rindo.

Olhando ao redor, lembrou de quando era criança e brincava entre os túmulos de reis polacos. E de como, pouco depois da execução de seu pai, quando tinha apenas sete anos, um dia viu uma foto de corpos amontoados em um jornal, ao lado da palavra "Polônia". A Polônia não pertencia à sua família? De onde saíam tantos cadáveres? "Perguntei à minha mãe o que havia acontecido, mas não me deram uma resposta. O choque dura até hoje." 

Outros descendentes de líderes nazistas, ainda que não tão diretos, também enfrentaram seu passado. Bettina Göering, sobrinha-neta do marechal e braço direito de Adolf Hitler, chegou a ligar as trompas aos 30 anos para não ter descendentes. E Katrin Himmler, sobrinha-neta de Heinrich Himmler, casou-se com um israelense filho de sobreviventes do Holocausto e escreveu um livro contra sua família, prestes a ser publicado em espanhol. Mas ninguém causou tanta comoção quanto Niklas.

"Não é fácil matar sua família várias vezes"

O rumor dos estudantes se intensificou à medida que nos aproximamos da igreja. Dentro, a nave estava abarrotada, e alguns professores vieram nos cumprimentar enquanto as crianças observavam curiosas. "Estou nervoso, não durmo bem na noite anterior a uma palestra. Não é fácil matar sua família várias vezes", disse Niklas em voz baixa, enquanto se dirigia à mesa diante do público onde falaria.

Fez-se silêncio quando ele começou a falar do pai, que, antes de se tornar governador da Polônia ocupada, havia sido um advogado bem-sucedido. Ou do dia em que visitou um campo de trabalho escravo próximo de Auschwitz acompanhado de sua babá e os guardas nazistas obrigaram um grupo de internos judeus esquálidos a subir em um burro que pulava ao ser atiçado, provocando sua queda. Os presos eram obrigados a subir de novo em meio às gargalhadas do menino, embora eles não rissem. Ou de quando acompanhou a mãe ao gueto de Cracóvia em um Mercedes para comprar peles de alfaiates judeus pelo preço que quisesse, e mostrou a língua a um garoto judeu de sua idade que passava por ali entre policiais com chicotes, e de como este se afastou em silêncio – "sentia-me vitorioso".



Ao final, os aplausos ecoaram na igreja. Os estudantes estavam felizes por ter comparecido, embora alguns reconhecessem ter ficado chocados com o que haviam escutado. Niklas estava exausto, mas claramente aliviado. Na saída, perguntei o que aconteceu com seus irmãos. Sua irmã Kitty, respondeu ele, se suicidou ao completar 46 anos, porque prometeu não superar a idade com que seu pai morrera, e outra irmã emigrou para a África do Sul, pois ali, pelo menos, existia o apartheid.

Seu irmão mais velho Norman, o único que o apoiou depois da publicação do livro sobre seu pai, mudou-se para a Argentina após a guerra e foi recebido como um herói pela comunidade nazista imigrante. Está aqui o "carniceiro da Polônia", cujo pai foi injustamente executado em Nuremberg, o mesmo que se sentou sobre os joelhos de Hitler, costumavam dizer. Norman despertou tal adoração que, não aguentando mais, deixou Buenos Aires para viver na selva e depois nos Andes, até que sua mãe implorou que ele voltasse para casa.

Enquanto isso, Niklas, já um adolescente, percorreu a Alemanha pedindo carona. Ele contou como conseguia lugar nos carros e até comida e alojamento grátis quando dizia quem era seu pai. Até que uma vez um motorista, ao saber disso, freou bruscamente e o expulsou do veículo, o que o levou a repensar seu passado. "O silêncio na Alemanha depois da guerra foi terrível. Isso começou a mudar graças à geração de 1968, mas a maioria dos alemães ainda não é democrata. Continuo sem confiar neles." Recomeçou a nevar e os poucos que ainda restavam foram deixando o local. Antes de irmos, perguntei a Niklas se, depois de todos esses anos, ele continuava odiando seu pai. "Não mais. O que sinto é desprezo. O que ele fez doerá em mim pelo resto de minha vida, sobretudo agora que tenho três netos maravilhosos de três, cinco e sete anos, e penso como eles não ligavam para as crianças, eles as mataram. Foi terrível o que fizeram. Sempre que penso nisso, realmente me enfureço com meu pai." 



Buscado no Terra Brasilis


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"Trabalho escravo segue o rastro do agronegócio"

Via  MST


“O trabalho escravo contemporâneo no Brasil tem sido principalmente detectado e combatido em atividades rurais”. Assim Xavier Plassat descreve a situação de um dos grandes problemas do país: o trabalho escravo. Na entrevista a seguir, realizada por email, ele fala da saída da empresa Cosan da lista suja, um cadastro público produzido pelo Ministério do Trabalho de empresas acusadas de submeter trabalhadores a situações análogas à escravidão. “No caso da Cosan, o que acontece é que o advogado do governo está renunciando a defender seu cliente, acordando por escrito com a Cosan que a União deixará de apelar contra a última decisão da justiça em favor da desta e não buscará, portanto, reincluir seu nome na lista suja”, explicou.
A Cosan é uma das maiores produtoras e exportadoras de açúcar e etanol do mundo, e a maior produtora de energia elétrica a partir do bagaço da cana-de-açúcar. Em fevereiro deste ano, a empresa se uniu a Shell e, juntas, criaram a Raízen que será a marca corporativa dos negócios e a aposta para o crescimento das vendas internacionais de etanol. No entanto, a Cosan havia sido incluída no cadastro de empregadores flagrados com mão-de-obra escrava em dezembro de 2009 por conta da libertação de 42 pessoas em sua usina em Igarapava-SP.
Nascido na França, Frei Jean Marie Xavier Plassat é coordenador da Campanha contra o Trabalho Escravo e destaca-se pela sua atuação na Comissão Pastoral da Terra (CPT) e na luta contra o trabalho escravo contemporâneo no Brasil. Seu trabalho rendeu-lhe o Prêmio Nacional de Direitos Humanos em 2008. É graduado em Ciência Política em Paris em 1970, ingressou na ordem dominicana no ano seguinte.

Confira a entrevista.
IHU On-Line – Depois de fazer um acordo com o governo federal, o nome da Cosan não consta mais na chamada "lista suja" do Ministério do Trabalho. Qual sua avaliação deste acordo? Ele abre brecha para a continuidade do trabalho escravo no Brasil?
Frei Xavier Plassat – É preciso voltar um pouco antes deste acordo. Os fatos caracterizando o trabalho análogo ao de escravo resultam de uma fiscalização de 2007 na Usina Junqueira, do grupo Cosan, em Igarapava-SP. Na oportunidade foram resgatados 42 cortadores de cana aliciados em Pernambuco por um gato camuflado de empresa terceirizada de corte de cana. Esgotados os recursos disponíveis contra os autos da fiscalização, o nome da Cosan foi para o Cadastro de Empregadores da Portaria nº 540/04 do Ministério do Trabalho (vulgo: “lista suja”). Bem antes de qualquer conversa com o governo federal, a Cosan já conseguiu na Justiça do Trabalho uma decisão liminar – concedida pelo juiz substituto Raul Gualberto Fernandes Kasper de Amorim, do Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região (TRT-10) posteriormente confirmada por sentença de 1ª instância , retirando seu nome da Lista suja: este é o expediente regularmente procurado por outros empregadores na mesma situação. Eles têm esse direito e há juízes para atendê-los prontamente, mesmo se para isso se utilizam de argumentos impróprios, demonstrando frequentemente seu grave desconhecimento em relação ao que a lei brasileira considera como trabalho análogo ao de escravo.
Geralmente, esses argumentos não resistem aos recursos interpostos e apreciados nas instâncias superiores. É dever do Advogado do Governo, que é a Advocacia Geral da União, defender judicialmente os atos do Executivo: portanto cabe ao Advogado Geral da União recorrer de tais decisões até a última instância. No caso da Cosan, o que acontece é que o advogado do governo está renunciando a defender seu cliente, acordando por escrito com a Cosan que a União deixará de apelar contra a última decisão da justiça em favor desta e não buscará, portanto, reincluir seu nome na "lista suja". É uma situação para lá de bizarra: inédita e escandalosa. Como para dizer: “ao agronegócio tudo é permitido” ou ainda: “o Ministério responsável pela publicação da lista suja – que é o Ministério do Trabalho – agiu de forma equivocada e não dá para defendê-lo”. Essa postura (a de desqualificar a atuação do Ministério do Trabalho e Emprego – TEM) já havia sido adotada pelo então ministro da Agricultura, Reinhold Stephanes, cuja pasta é mesmo a de advocacia geral do agronegócio brasileiro (ele chegou a qualificar a inclusão da Cosan na "lista suja" de "exagero" e de "erro"). A presidente da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil – CNA, senadora Kátia Abreu, é mais radical: “Agentes partidários, travestidos de funcionários públicos, empenham-se em difundir a infâmia de que a maioria dos produtores rurais ou é predadora do meio ambiente ou escravagista. A manipulação de causas contra as quais ninguém, na essência, se opõe é um dos truques de que se vale uma certa esquerda fundamentalista, adversária da livre-iniciativa, para manter como reféns os produtores rurais, difamando-os” (O Estado de São Paulo, 25-5-2010).
Bizarro e escandaloso: porque há provas caracterizando como “análoga à de escravo” a situação encontrada pelos fiscais em junho de 2007 na Usina da Cosan (usina Junqueira, em Igarapava-SP). Trata-se do relatório do Grupo Móvel de Fiscalização onde são reunidas as evidências coletadas pelos Auditores Fiscais do Trabalho, o Ministério Público do Trabalho e a Polícia Federal presentes na operação. Mesmo assim, na sua decisão o magistrado sustentou que os autos de infração eram insuficientes para a "tipificação da redução à condição análoga à de escravo". E ainda argumentou que, por ter assinado – três meses antes do caso em tela – um Termo de Ajustamento de Conduta com o MPT (TAC nº 2803/2006), em consequência de uma fiscalização anterior, a Cosan não podia ser questionada por procedimentos que já havia se comprometido a resolver... entre os quais justamente o uso da terceirização ilegal.
"Bizarro e escandaloso: porque há provas caracterizando como “análoga à de escravo” a situação encontrada pelos fiscais em junho de 2007 na Usina da Cosan"
O que impressiona e desola ao mesmo tempo é ver que um Advogado Geral da União, por tarefa, eminente sabedor das leis, venha se utilizar dos mesmos argumentos falhos: segundo a reportagem de João Carlos Magalhães, publicada na Folha de São Paulo (28-2-2011), o ministro Adams afirma que só fez acordo para resolver uma situação “excepcional”: pois há “fatores que indicam a não intencionalidade” da Cosan em submeter os trabalhadores a tratamento análogo à escravidão, e mais: não foi nem ela que infligiu esse tratamento, foi um terceiro: a tal empresa terceirizada! Ora justamente esta é estratégia mais comum na prática contemporânea do trabalho escravo: o responsável pela atividade-fim contrata os serviços de terceirizados, imaginando eximir-se da responsabilidade de empregador. É jurisprudência constante a requalificação deste truque: porque no direito brasileiro do trabalho, o que predomina é a realidade da relação, não a sua roupagem legal. Tanto é que já se perdeu a conta dos fazendeiros obrigados a pagar pelas falcatruas do gato por eles interposto, das siderúrgicas intimadas a assumir as contas dos seus carvoeiros de fachada, e das usinas responsabilizadas por terceirização ilegal.
Mas tem outro "detalhe", provavelmente determinante no caso da Cosan: a mesma empresa já havia assinado pactos de responsabilidade empresarial: entre estes o Compromisso Nacional para Aperfeiçoar as Condições de Trabalho na Cana-de-Açúcar. Inclusive, no comunicado público sobre o episódio, a companhia assume para si o "papel de liderança, junto aos governos estadual e federal, no esforço de regulamentar e melhorar as condições de trabalho de toda a cadeia produtiva do agronegócio". No intuito de promover a imagem limpa do produto brasileiro, esse compromisso foi laboriosamente articulado pelo governo federal, na busca frenética de conferir ao etanol o status de commodity global. Este é um compromisso do tipo amistoso: basta assinar que ninguém cobra nada, ninguém monitora, ninguém é sancionado. Você, por encantamento, vira ficha limpa. No ano passado, a própria Comissão Nacional Para a Erradicação do Trabalho Escravo – Conatrae chamou para discutir esta bizarrice um representante da Presidência da República. Foi prometida a iminente elaboração de mecanismo de monitoramento independente.
Até hoje esperamos... Entendo assim: ficava realmente muito feio na fotografia ter a mesma empresa ao mesmo tempo incluída na lista suja e presumida “liderança” da lista limpa. A solução imaginada foi a de quebrar um dos dois termômetros. Ao descartar a possibilidade de a Cosan voltar a frequentar o cadastro do Ministério do Trabalho, o Advogado Geral da União (Luis Inácio), cumprindo ordens recebidas de cima (...), acabou provocando uma deflagração que promete de ir longe. Se o Compromisso da Cana já era considerado um duvidoso instrumento de marketing, agora virou um has been. Já era. A comunidade internacional, a ONU, a OIT costumavam louvar a corajosa política de erradicação do trabalho escravo adotada no Brasil, embasada em avançado conceito legal, alicerçada na independência e no rigor da fiscalização, e amparada por intensa mobilização social e institucional. Já era. Se tal bizarrice foi concedida à Cosan, por que seria recusada a outra qualquer empresa de renome ou de peso ou de boa contribuição eleitoral? Quem pode garantir como insistiu o ministro Adams que o governo não virará um "balcão de TACs".
IHU On-Line – O senhor sabe dizer como a Cosan trata seus funcionários? Quais os indícios de trabalho escravo?
Frei Xavier Plassat – A fiscalização realizada na Usina Junqueira trouxe evidências robustas. Segundo a procuradora do trabalho, Carina Rodrigues Bicalho, que atuou na fiscalização da Cosan, as constatações do Grupo Móvel foram plenamente suficientes para caracterizar o trabalho análogo ao de escravo.
São assim resumidas pelo jornalista Maurício Hashizume, da Repórter Brasil (10-1-2010): Aliciamento de trabalhadores, submissão a sistema de endividamento (conhecido também como "barracão" ou “truck system”); condições degradantes e irregulares nas frentes de trabalho e em termos de alojamento, alimentação, transporte etc. Um preposto da  empresa terceirizada José Luiz Bispo Colheita - ME arregimentou mão de obra em Araripina-PE. De lá, mobilizou transporte irregular – sem a Certidão Declaratória exigida pelo MTE – até Delta-MG, na divisa entre SP e MG, próximo a Igarapava-SP. A viagem foi cobrada antecipadamente (R$ 210). As vítimas contaram que, no momento da abordagem inicial, não foram informadas que teriam de arcar com aluguel, comida e produtos de necessidade básica para o trabalho. Quando chegaram ao precário "Alojamento do Guri", em Delta-MG, as vítimas se viram obrigadas a pagar pela estadia. Alimentos e outros itens essenciais (chapéu de proteção contra o sol, marmita para refeições e garrafa térmica para levar água) adquiridos nos supermercados do Carlinhos e do Juarez, indicados pelo intermediário na contratação; eram contabilizados como dívidas e acabavam sendo descontados dos salários. "Não estava sobrando dinheiro para que eles pudessem mandar para a família", sublinhou a procuradora.
A maior parte do grupo começou a trabalhar em maio de 2007 e a fiscalização recolheu "vales" correspondentes aos produtos contabilizados no sistema de dívidas. Entre os libertados da Usina Junqueira, havia um jovem de 17 anos trabalhando no corte de cana, atividade proibida para quem não tem 18 anos completos. No Alojamento do Guri, foram constatadas outras irregularidades tais como excesso de pessoas, alimentos próximos a EPIs e ferramentas sujas e dispostos no chão, carnes penduradas em varais pelos cômodos, instalações sanitárias sem condições de uso e fiação elétrica inadequada. Havia ainda problemas graves nas frentes de trabalho como a ausência de água potável e o transporte irregular. A água que os trabalhadores levavam para beber era retirada diretamente das torneiras do Alojamento do Guri, sem passar por qualquer filtragem ou purificação. Sem documentação regular e em péssimo estado de conservação, o ônibus que levava o grupo estava sem freio e foi apreendido pela fiscalização.
IHU On-Line – O que caracteriza o trabalho escravo na modernidade? A que situações e condições de trabalho as pessoas são submetidos?
Frei Xavier Plassat – No Brasil, além de referido aos compromissos internacionais assumidos pelo país junto à ONU, à OIT e à OEA, o trabalho escravo é definido por lei interna, incorporada ao Código Penal (artigo 149). Essa lei não pode ser acusada de ser defasada: ela foi reformulada pelo Congresso Nacional em 2003 (Lei 010.803-2003). Na redação anterior, o legislador só aludia ao crime de trabalho análogo ao de escravo e definia as penas incorridas (2 a 8 anos de reclusão). Como consequência, vários intérpretes da lei procurava na escravidão antiga, colonial ou imperial, o modelo de referência: grilhões, castigos, correntes. Na nova redação, o legislador enumera as hipóteses em que esse crime é configurado e se atenta às modernas correntes da escravidão: trabalho forçado, dívida, coação da liberdade, degradância da pessoa, jornada exaustiva. Eis as características destacadas.
No texto atual, é crime “reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto. § 1º Nas mesmas penas incorre quem: I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho; II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho. § 2º A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido: I – contra criança ou adolescente; II – por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem.” É interessante ver que também, na legislação internacional moderna sobre servidão e escravidão, estão cada vez mais incorporados esses critérios centrados simultaneamente na dignidade e na liberdade da pessoa, porque – e isto é uma evidência   não há como garantir esta sem aquela.
IHU On-Line – O senhor percebe, no país, uma tentativa de desmoralizar a fiscalização do trabalho escravo? Como vê a fiscalização nesta área?
Frei Xavier Plassat – Especialmente quando se interessa a grandes empreendimentos do agronegócio brasileiro, a fiscalização do Ministério do Trabalho é alvo de ataques coordenados: Unaí-MG foi o mais cruel (3 fiscais e seu motorista foram chacinados quando fiscalizavam lavouras de feijão); Confresa-MT e Ulianópolis-PA foram os mais “políticos” (senadores e representantes classistas, tentaram tumultuar o resgate de, respectivamente, 1108 e 1064 cortadores de cana na Gameleira e na Pagrisa). O caso Cosan abre novo capítulo nessa história.
Embora sujeita às imprevisíveis contingências orçamentárias, deve-se reconhecer que o Brasil tem na fiscalização do trabalho um instrumento de que poucos países dispõem. O Grupo Móvel de fiscalização opera desde 1995, mas a largada de verdade foi dada a partir de 2003, conseguindo-se libertar de lá para cá mais de 35 mil trabalhadores, 85% do total resgatado desde 1995. Não é que tudo funciona a contento: há problemas tais como o engessamento do planejamento gerando atrasos no atendimento a denúncias que, se não tratadas com urgência, perderão consistência; há dificuldades operacionais para garantir efetiva participação da Polícia Federal com sua competência específica de polícia judiciária; há resistência em algumas superintendências regionais para assumir esse tipo de fiscalização.
Mas, no geral, pode-se dizer que a fiscalização melhorou em termos de atendimento. Já é menor a proporção de denúncias (um terço) que continuam sem fiscalização. Mas, importante que seja lembrado, a fiscalização é só um passo inicial no combate ao TE: passo indispensável mas insuficiente. Libertar 100 escravos, 1000 escravos ou 40.000, como aconteceu desde 1995, não erradica a escravidão. Ela é um sistema que tem raízes profundas e mecanismos eficazes para garantir sua reprodução: ganância, miséria, impunidade, um ciclo onde cada elemento é produtor e gerador dos demais.
IHU On-Line – Que órgão é responsável pela fiscalização?
Frei Xavier Plassat – A fiscalização móvel, que é a fiscalização especializada no combate ao trabalho escravo, é competência do Ministério do Trabalho o qual articula as operações do Grupo de Fiscalização Móvel, um grupo especial, com comando central independente das pressões locais ou regionais. Em função das competências locais disponíveis e do caráter das denúncias investigadas, um número significativo de operações acaba sendo assumido por Grupos de Fiscalização constituídos nas próprias Superintendências Regionais do Trabalho, mas obedecendo aos mesmos critérios operacionais.
IHU On-Line – Como atua a Comissão Nacional/Estadual de Erradicação do Trabalho Escravo?
Frei Xavier Plassat – Sob a presidência do ministro-chefe da Secretaria de Direitos Humanos, a Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae) é formada por representantes do executivo, por meio de vários ministérios (Trabalho e Emprego, Justiça, Ministério do Desenvolvimento Agrário, Fazenda Desenvolvimento Social, etc.), representantes de entidades (sociedade civil: Comisão Pastoral da Terra, Repórter Brasil, Movimento Humanos Direitos, Organização Internacional do Trabalho, Ministério Público, associações de magistrados, procuradores), inclusive entidades sindicais patronais (CNA, CNI) e de trabalhadores (Contag).
Cabe à Conatrae acompanhar a execução das políticas e fomentar ações e articulações de que a conjuntura necessita. Deveria ser por excelência um espaço de monitoramento e adaptação das ações do plano. A partir de 2006, como resultado da mobilização social, começaram a ser criadas algumas Coetrae (ou equivalente), em nível estadual, com a mesma finalidade, relacionada à implementação de planos estaduais específicos: assim foi no Maranhão, Tocantins, Mato Grosso, Piauí e, mais recentemente, na Bahia. Rio de Janeiro e São Paulo estão em processo de criação. A bem da verdade, muitas ficaram ainda no papel, destacando-se positivamente algumas iniciativas em Mato Grosso e Piauí, e algumas tentativas no Tocantins.
IHU On-Line – Como se descobrem os casos de trabalho escravo? Os trabalhadores têm o hábito de denunciar?
Frei Xavier Plassat – A denúncia dos próprios trabalhadores é o principal canal para descobrir os casos de trabalho escravo e orientar a fiscalização. Para um trabalhador submetido a tal situação, a decisão de fugir para denunciar não é ato qualquer: é ato de resistência e de risco assumido que só vem acontecendo quando um limite é ultrapassado na violação de sua dignidade ou de sua liberdade. Como muitos acabam resumindo, o limite é quando se acham “tratados pior que animais” e que se rompem as amarras que os prendiam ainda à cultura ou à norma da obediência, da promessa feita, da dívida a pagar (“peão paga o que deve”).
Com a divulgação do tema, sua maior exposição na mídia, a consciência de que denunciar pode provocar resposta efetiva, a decisão de partir para a denúncia tem virado menos problemática. Por muito tempo as equipes da Comissão Pastoral da Terra – CPT foram o canal principal de recepção e encaminhamento das denúncias desses trabalhadores. Isso reflete provavelmente a credibilidade do trabalho desenvolvido junto às comunidades rurais nos 35 anos de presença solidária da CPT ao seu lado. Hoje ainda, sua campanha nacional acolhe e identifica mais do terço dos casos. Acolher um trabalhador implica em muito mais que documentar e encaminhar sua denúncia para o Grupo Móvel: redunda em ações pré- e pós-fiscalização: na prevenção e no exercício coletivo da vigilância, na busca de alternativas para que o ciclo da escravização não volte a se reproduzir. Caso contrário, se devolvido às mesmas condições que provocaram seu aliciamento, o trabalhador resgatado terá séria probabilidade de voltar qualquer dia à situação análoga à de escravo.
IHU On-Line – Em que setores industriais brasileiros há maior evidência de trabalho escravo?
Frei Xavier Plassat – O trabalho escravo contemporâneo no Brasil tem sido principalmente detectado e combatido em atividades rurais. Mesmo assim, sabemos que é uma realidade urbana também, principalmente em oficinas de confecção de São Paulo, onde predomina a exploração de imigrantes bolivianos, geralmente irregulares ou traficados. Em 2010, 242 pessoas foram libertadas de situação análoga à de escravo em atividades não agrícolas: construção civil (175, inclusive em obras... do PAC), entretenimento (24), confecção (43) e foram 25 os casos registrados de um total nacional de 211. No campo dois terços dos casos identificados entre 2003 e 2010 estão na pecuária em sentido amplo (desmatamento, abertura e manutenção de pasto); 17% em lavouras de soja, algodão, café, milho, plantações de cana de açúcar, culturas de frutas e legumes, reflorestamento; 10% em carvoarias a serviço da siderurgia (o carvão vegetal é insumo para a produção de ferro-gusa, insumo do aço). Em termos de pessoas resgatadas (na conta da CPT: 35.027 entre 2003 e 2010), a pecuária representa 35%, a cana: 29%, as outras lavouras e o reflorestamento: 20% e o carvão vegetal: 7%.
IHU On-Line – O trabalho escravo é acentuado em alguma região específica do país? Quais os estados que ainda permitem essa prática?
Frei Xavier Plassat – No início, detectado essencialmente no chamado arco do desmatamento – que vai do Maranhão até Mato Grosso passando por Pará e Tocantins –, houve uma extensão do fenômeno à totalidade do território nacional, com pouquíssimas exceções. Mesmo assim a Amazônia respondeu por dois terços dos casos em 2009 e 2010 (sendo 47% no Norte e 35% somente no Pará) e um terço dos resgates (23% no Norte); Sudeste e Sul por 12 e 10% respectivamente (mas 63% e 11% dos resgates, resultado em que influi o efeito “canavial”: a mão de obra concentrada num só canavial ultrapassa e muito o número de trabalhadores explorados em uma fazenda de gado); 15 a 18% dos casos e dos resgates estão no Centro-Oeste (em parte inserido na Amazônia).
De 2003 a 2010, o Sul registrou 85 casos sendo 47 no Paraná, 26 em Santa Catarina e 12 no Rio Grande do Sul. Longe ainda dos “campeões”: Pará (901 casos), Maranhão (218), Tocantins (208), Mato Grosso (195), Goiás (84), Bahia (56). Perto de Minas Gerais (48), Mato Grosso do Sul (38), Rio de janeiro (27), São Paulo (24), Piauí, Rondônia e Espírito Santo (20 cada). Pelo número de resgatados, eis os estados mais críticos: Pará (8973), Mato Grosso (4026), Goiás (3070), Tocantins (2400), Mato grosso do Sul (1969), Maranhão (1967), Minas Gerais (1846), Rio de janeiro (1680), Espírito Santo (968).  
IHU On-Line – Como explicar que ainda exista trabalho escravo no século XXI?
Frei Xavier Plassat – Essa questão do “ainda” é complexa e simples ao mesmo tempo: lucrar é a razão derradeira que move o escravagista, não a maldade em si. Esse motor é cego, tanto é que, se flagrado, o escravagista moderno “justifica” que nem sabia que aquilo estava acontecendo em suas terras, sob seu comando. Esse motor cego não tem época: somente encontra mais ou menos freios na lei, no Estado, na sociedade.
Trabalho degradante, jornada exaustiva, dívida fabricada, humilhações, ameaças e violência, junto com o isolamento, são as correntes eficazes do moderno cativeiro. Obviamente há diferenças em relação à forma antiga de escravizar. Sobre o escravo moderno, o patrão não exerce como antigamente um direito de propriedade, mas sim de uso e abuso, o que muitas vezes se revela até pior, pois não se responsabiliza pela “conservação” deste patrimônio ou a reprodução de sua prole. Pelo contrário, descarta-o quando não lhe serve mais, depois de explorá-lo até ou além do limite, em serviços braçais necessariamente de limitada duração (a duração média dos serviços “contratados” nessa modalidade não passa geralmente de 3 a 4 meses). Carvoeiro, roçador de pasto ou cortador de cana do século XXI tem expectativa de vida inferior a muitos escravos dos séculos passados.
O trabalho escravo segue o rastro do agronegócio o qual, na última década, se tornou a menina dos olhos das políticas públicas: na fumaça das carvoarias que sacrifica homens e florestas para produzir aço; nas pegadas do gado que continua avançando sobre a Amazônia Legal, com desmatamento em grande escala; na onda da lavoura de soja que conquistou os cerrados centrais; no boom do etanol que explode de norte a sul e ressuscita o velho canavial. Presente nas principais cadeias produtivas do agronegócio brasileiro: carne e madeira (metade das denúncias), cana e demais lavouras (metade dos libertados), e carvão vegetal para uso na siderurgia. Operadores internacionais demandam produtos sempre mais baratos sem se preocupar com o que isso implica lá na ponta. Parece haver ligação entre essa expansão desenfreada do agronegócio, no contexto da economia globalizada, e a precarização das relações trabalhistas.
Como costuma dizer Leonardo Sakamoto,“em nome da conquista de novas fatias de mercado, sem redução das margens de lucro, há uma pressão contínua para flexibilizar os direitos do trabalhador”. É fato que aonde o Ministério do Trabalho leva a fiscalização, flagra situações degradantes e identifica trabalho escravo. E aí fica a contradição: é o mesmo Estado que apoia a expansão acelerada das monoculturas de exportação e que corre atrás dos prejuízos brutais que ela própria provoca. Que liberta escravos na Cosan e confere à megaempresa brasileira, líder global do açúcar e do etanol, seu duvidoso atestado de lisura.
IHU On-Line – É possível estimar quantos trabalhadores escravos existem no Brasil atualmente?
Frei Xavier Plassat – Não é possível falar um valor certo: nenhum IBGE da vida se arrisca a contabilizar um crime ainda por ser desvelado. O que existe são estimativas “a mínima”: a CPT avançou anos atrás uma hipótese conservadora de pelo menos 25.000 trabalhadores entrando anualmente no ciclo da escravidão, somente na Amazônia. Muitos fiscais do trabalho hoje falam em 40 a 100.000 pessoas, para o conjunto do país. É muito e pouco ao mesmo tempo: significa que só uma fração dos empregadores rurais mantém essa prática criminosa e que seria teoricamente fácil acabar com isso. Para isso já precisaria uma CNA mais responsável. Comparado aos números disponíveis para o mundo (entre 12,5 e 27 milhões de escravos), o Brasil não está entre os piores;  está entre os poucos que adotaram uma política de combate: um modelo que – até este episódio da Cosan – havia virado artigo de exportação, aprovado pela OIT e pela ONU. Sobre a situação mundial, sugiro ao leitor uma visita ao Freedom Project, lançado este mês pela CNN: http://thecnnfreedomproject.blogs.cnn.com. Ali assistirá uma cena impressionante: após ver imagens e ouvir depoimentos de uma brutal clareza, o ministro do trabalho da Índia, país líder em trabalho escravo, teima em negar o óbvio: “No, this is not slavery!”. Um discurso que já ouvimos aqui. Para brasileiro ou para inglês ver?
IHU On-Line – Que aspectos sociais, políticos, econômicos têm favorecido a manutenção do trabalho escravo no Brasil?
Frei Xavier Plassat – O Brasil tem na escravidão uma herança maldita que gerou estruturas e atitudes até hoje fincadas nas entranhas do país. São muitos ainda – fazendeiros, parlamentares, magistrados, políticos, advogados (gerais ou particulares) e peões – que consideram normal ou, simplesmente, tradicional ou ainda meramente atrasado esse jeito de se conseguir um trabalho braçal de baixo custo, compatível com as ambições agroexportadoras do país.
Como explicar a frequência com a qual escravos são encontrados em terras de juiz, de deputado, de senador, de advogado, de médico, de cantor, de industrial? Como entender a teimosia dos deputados brasileiros em se negar, há mais de 10 anos, em aprovar uma emenda constitucional que propõe simplesmente retirar a propriedade da terra onde for encontrado escravo? Se a propriedade é sinônimo de poder inquestionável e o latifúndio forma em que qualquer política nacional há de ser moldada, então fica difícil garantir os direitos da dignidade, da liberdade, e o acesso de todos a todos os direitos.
A persistência desta herança maldita do capitalismo brasileiro decorre da força exorbitante da "Casa Grande" nas estruturas do poder. Uma expressão paradigmática é a chamada bancada ruralista do Congresso Nacional.
IHU On-Line – Qual é o perfil do trabalhador escravo? Tal como nos séculos passado, é ele majoritariamente negro?
Frei Xavier Plassat – Hoje, um brasileiro não se torna necessariamente escravo por ser negro. Porém, pela sua persistente marginalização socioeconômica, o afrodescendente continua fornecendo os maiores contingentes. Grilhões e ferros não são mais o meio comum de subjugar a liberdade de outrem: os escravos “da precisão”, trabalhadores sem terra e sem alternativa, vítimas das promessas de aliciadores organizados, migram país afora em busca de sustento a qualquer preço. Usar trabalhadores trazidos de fora sempre tem sido a regra na história mundial da escravidão. Nas condições do Brasil contemporâneo, o avanço da fronteira agrícola sobre as terras da floresta amazônica, mas também do Cerrado central e do Pantanal, tem constituído um apelo muito forte para a migração temporária ou definitiva de trabalhadores empobrecidos do nordeste e do norte do país, devidamente aliciados por mirabolantes promessas.
Rotas e empreendimentos foram se diversificando: escravos encontrados no Paraná foram aliciados em Minas e Bahia para plantar pinus ou extrair erva-mate; já em São Paulo, Rio, Mato Grosso e Goiás, os migrantes da cana encontrados em situações degradantes – uma das condições do trabalho análogo à de escravo, culminando em ocorrências de morte por exaustão – vêm do Piauí, Maranhão ou Alagoas. Na maioria dos casos, é encontrada no Norte e Nordeste, os trabalhadores migraram do interior do nordeste procurando alternativa à falta de terra para plantar ou ali acabaram se fixando. Graças à inclusão dos resgatados no Seguro-desemprego a partir de 2003, temos hoje um perfil do conjunto desses trabalhadores. Segundo os números apurados até outubro de 2009, a maioria é de homens (95,5%); 75% deles nasceram entre Maranhão (28%), Pará, Bahia, Mato Grosso do Sul, Piauí, Minas Gerais, Tocantins ou Pernambuco. Analfabeta: 40%; 4ª série incompleta: 28%; ensino médio completo: 1,8%. Em 2 entre 3 casos, a faixa etária no dia da libertação era de 18 a 34 anos; 3% dos resgatados estavam abaixo de 17 anos.
IHU On-Line – O senhor costuma ter contato com trabalhadores escravos? O que eles relatam e o que os impede de abandonar esta situação?
Frei Xavier Plassat – Costumo sim, é parte do nosso dia a dia. Os trabalhadores que nos procuram são variados. Há peões moradores da região que um dia acabam desistindo de se dobrar às imposições do patrão ou do gato e, eventualmente orientados por colegas ou informações da nossa Campanha, ir atrás de seus direitos. Há muitos peões do trecho, para quem a vida é uma sucessão de empreitadas de fazenda em fazenda, com sucessos e derrotas. O que lhes impede de abandonar essa situação é simplíssimo: a falta de alternativa. Mesmo sabendo dos riscos incorridos muitos voltam à empreitada maldita, porque não têm terra para plantar ou qualificação para oferecer no mercado do trabalho. Cada história é uma história. Reproduzo a seguir as anotações que tomei ao entrevistar dois trabalhadores: o Jucimar e o Romualdo (nomes aqui trocados, por questão de segurança).





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