terça-feira, 14 de dezembro de 2010

O fim de uma era na esquerda brasileira

Sanguessugado do Sakamoto
Todo fim de ano, posto esta reflexão. Faço questão. Com ela, dou uma pequena contribuição a um tema que, mais do que nunca, está pegando fogo (sem trocadilhos), ainda mais com grupos de parlamentares querendo aprovar, a toque de caixa, o novo Código Florestal sem o devido debate que ele e o futuro das próximas gerações merecem. Em tempos de conferências do clima e movimentações pós-eleitorais, o texto continua atual. E nós seguimos caminhando nessa direção.
Há um problema entre a velha e a nova esquerda, forjado no contexto histórico em que seus atores foram criados. Não adianta mostrar uma nova luz para a interpretação da realidade: há grupos que fecham e não abrem com o padrão de desenvolvimento da ditadura. A meu ver a solução se dará através de renovação geracional, ou seja, os mais antigos se retirando com a idade para dar lugar aos mais novos. É triste que seja assim, mas tendo em vista os últimos embates, não acredito em conciliação possível.
Não sei se todos se deram conta, mas estamos vivendo tempos interessantes – para usar a expressão do professor Hobsbawn – no que diz respeito ao “ser” de esquerda no Brasil. Um período de mudanças em que um dos efeitos é a falta de entendimento entre grupos que, teoricamente, defendem o mesmo objetivo. A questão ambiental é um dos palcos principais dessa batalha, em que a razão tem sido morta e enterrada – principalmente pelo grupo que está no poder.
Tivemos três grandes ciclos da esquerda no país durante o século 20. Grosso modo, o primeiro deles, anarquista, foi fomentado pelos imigrantes europeus que vieram trabalhar na então nascente indústria paulista e difundiram seus ideais. O segundo, com os movimentos comunistas e socialistas, da intentona à resistência à ditadura militar dos anos de chumbo. O terceiro veio com o processo de redemocratização do país e a liberdade de organização civil e tem um forte tom partidário.
Ou seja, a esquerda durante o século 20 variou de acordo com a relação que firmava com o Estado. Do anarquismo, que não acreditava que ele fosse fundamental para o desenvolvimento da sociedade, passando pelo comunismo, que defendeu a necessidade de destruir o Estado para depois reconstruí-lo sob a direção do proletariado, até o “petismo” em que a esquerda acreditou que seria possível tomar o Estado dentro das regras do jogo da classe dominante, ou seja através da disputa político-eleitoral.
Veio o século 21 e uma das poucas certezas que tenho é que o paradigma do sistema político representantivo está em grave crise por não ter conseguido dar respostas satisfatórias à sociedade. Bem pelo contrário, apesar de ser uma importante arena de discussão, ele não foi capaz de alterar o status quo. Apenas lançou migalhas através de pequenas concessões, mantendo a estrutura da mesma maneira e a população sob controle. O Estado, assim como há 100 anos, continua servindo aos interesses de alguns privilegiados detentores dos meios de produção. E a maioria das disputas relevantes no seio do Estado são eminentemente intra-classe, no caso a elite.
Os atores desse terceiro ciclo da esquerda, que tem seu cerne no petismo, fracassaram em sua idéia original de mudar o Estado por dentro. Grande parte do PT (deixando claro que há notáveis exceções) adotou práticas que ele mesmo abominava. Bem, todos conhecem a história.
Onde está a força da esquerda hoje? Nos movimentos sociais e nos grupos de base. Ou seja, atores que dialogam com o Estado, mas que estão fora dele, atuando na transformação da sociedade pelo lado de fora. Creio que isso deve-se à desilusão com a política partidária tradicional, à incapacidade dessa velha esquerda em dar alternativas para os jovens e ao fortalecimento de grupos que nunca adentraram no sistema partidário por não acreditarem em sua natureza ou por serem dele alijados.
O mais importante grupo político hoje no país, concordando ou não com seu modus operandi, é o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que através da luta pela reforma agrária tenta alterar o modelo de desenvolvimento econômico. Ou seja, faz política.
E não é só a luta pela terra. A incapacidade do sistema representativo de gerar respostas satisfatórias levou também ao fortalecimento da luta da sociedade civil em outras frentes, como trabalho, comunicação, direitos humanos e meio ambiente. Ressalte-se, apenas, que sociedade civil não é a mesma coisa que organizações não-governamentais, pois, a despeito das ONGs comprometidas com mudanças estruturais, muitas delas são de ordem cosmética e apenas reforçam as condições atuais.
O interessante é que esse quarto ciclo de esquerda, dos movimentos e da sociedade civil organizada ou não, tem muito a ver com o primeiro, lá no início do século 20. Ao questionar o papel do Estado e agir por conta própria, adota nuances de anarquismo. Alguns podem falar que o que chamo de nuances de anarquismo seria, na verdade, um processo de aprofundamento do Estado mínimo em que o governo se exime de suas responsabilidades entregando ao mercado a gestão da sociedade.
Há de se ter cuidado com isso e não confundir programas como “Amigos da Escola” – que, na verdade, são mais daquelas migalhas que falei acima – de um processo sério de organização popular pela transformação da realidade social, econômica, cultural, política. Mas essa separação é fácil de ser feita, basta verificar quais são os impactos da ação de determinado grupo. Se elas não se encaixam em um panorama maior, de transformação real, e limitam-se à sua pontualidade, estamos falando de migalhas.
Por exemplo, ocupações de reitorias pelos estudantes, de terras improdutivas pelos sem-terra ou de prédios abandonados por sem-teto têm um objetivo muito maior do que apenas obter concessões de curto prazo. Elas não servem apenas para tapar as goteiras das salas de aula, desapropriar uma fazenda ou destinar um prédio aos sem-teto. Os problemas enfrentados pelos movimentos envolvidos nesses atos políticos não são pontuais, mas sim decorrência de um modelo de desenvolvimento que enquanto explora o trabalho, concentra a renda e favorece classes de abastados, deprecia a coisa pública (quando ela não se encaixa em seus interesses) ou a privatiza (quando ela se encaixa). Ou seja, as ocupações são uma disputa de poder feita simultaneamente em âmbito local e global que, no horizonte histórico, poderá resultar na manutenção da pilhagem econômica, social e cultural da grande maioria da sociedade ou levar à implantação de um novo modelo – mais humano e democrático.
O problema é que toda mudança leva a um enfrentamento. No caso da questão ambiental, por exemplo, há uma disputa sendo travada entre pessoas da velha e da nova esquerda via mídia. O discurso de que o desenvolvimento é a peça-chave para a conquista da soberania (o que concordo) e que, portanto deve ser obtido a todo o custo (o que discordo) tem sido usado por pessoas que foram comunistas, tornaram-se petistas e hoje fazem coro cego ao PAC do governo federal. Mantém viva a parte ruim do pensamento do genial Celso Furtado que, na prática, significa que é necessário sacrificar peões para ganhar o jogo.
Do outro lado, os movimentos sociais e ONGs sérias que atuam nesse campo defendem que o crescimento não pode ser um rolo compressor passando por cima de pessoas e do meio ambiente. Por suas ações, que impedem um laissez-faire generalizado, são taxados de entreguistas e de fazerem o jogo do capital internacional. Nos últimos tempos, presenciamos isso nas críticas levantadas contra o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), que ocupam hidrelétricas, ou nos impropérios lançados às comunidades que protestaram contra as obras de transposição de parte das águas do São Francisco.
É claro que os países do centro querem que nós arquemos com o ônus da preservação do planeta. O mercado de carbono, na prática, é isso: compra-se créditos de terceiros (que vão adotar práticas ou projetos que absorvam carbono da atmosfera) para que se possa poluir. Ao mesmo tempo que isso acontece, esses países se beneficiarão do alargamento da já grande distância de desenvolvimento entre o centro e a periferia.
Mas o atual modelo, gestado no seio do capitalismo, e em plena vigência no Brasil tem um potencial destruidor muito grande, além de ser extremamente concentrador. Ou seja, o resultado da pilhagem dos recursos naturais e do trabalho humano, mantendo o padrão adotado até aqui, continuará nas mãos de poucos, sejam eles brasileiros ou estrangeiros. Não faz sentido defender algo que também está nos afundando.
Como se resolve esse enfrentamento? Na minha opinião, não se resolve. O problema entre a velha e a nova esquerda está no contexto histórico em que seus atores foram formados. Não adianta mostrar fatos novos ou uma nova luz para a interpretação da realidade, há grupos que fecham e não abrem com o padrão de desenvolvimento forjado na ditadura – paradoxalmente a mesma ditadura que os torturou. A meu ver a solução se dará através de renovação geracional, ou seja, os mais antigos se retirando com a idade para dar lugar aos mais novos. É triste que seja assim, mas tendo em vista os últimos embates, não acredito em conciliação possível.
Tudo o que foi discorrido aqui, é claro, diz respeito à esquerda internamente. Agora, como diria o professor Garrincha, falta combinar com o inimigo. Porque a história mostra que apesar da esquerda ter capacidade de influenciar a realidade no país, ela não foi capaz de transformá-la. E a menos que algum dos novos ciclos traga respostas para romper com a estrutura atual, continuaremos vendo eles se repetirem nos fracassos. Para a alegria da direita.

Buscado no Gilson Sampaio

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