quinta-feira, 11 de março de 2010

“Mineiridade. Quem ganha com ela?”

José Carlos Ruy:
A mineiridade é a ideologia da oligarquia mineira, diz Heloisa Starling. É uma autovisão introjetada e incorporada pelos habitantes do estado e, assim, marcando também a consciência dos membros das classes subalternas. É uma tentativa, diz a autora, “de transformar o interesse particular de uma classe social determinada no interesse coletivo de toda a sociedade".

Minas não há mais
Carlos Drummond de Andrade

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    O editorial do jornal Estado de Minas, publicado no último dia 03/03/2010 (intitulado Minas a reboque, não!) faz um controverso apelo à mineiridade, que merece reflexão. O que é mesmo mineiridade? Muitos escritores concordam que ela esconde o apego à tradição, à moderação na política, a tendência à conciliação e ao acordo, e a rejeição do progressismo e das posições radicais. Alceu Amoroso Lima, por exemplo, ressaltava o conservadorismo que se oculta sob aquela expressão que tem, entre seus valores fundamentais, a segurança, a permanência, a intensidade e a tradição. A estudiosa Simone Maria Rocha, autora de uma tese de doutorado (em 2007) tem posição semelhante e assinala justamente o apego à tradição, à ordem, à prudência e às posições moderadas. Mas será possível estender esta caracterização a toda a população do Estado? A escritora Heloisa Maria Murgel Starling, que é mineira e autora do livro Os senhores das Gerais – os Novos Inconfidentes e o golpe de 1964 (publicado em 1986) analisou com mais detalhe esta tese que já pode ser considerada histórica e tem suas raízes já no século 18. É uma tese ambígua: na época das revoltas mineiras, que culminaram na Inconfidência de 1789, o representante da Coroa portuguesa em Minas Gerais, o Conde de Assumar, dizia que os mineiros seriam intratáveis. Pode-se concluir que já há pelo menos dois séculos se atribui aos mineiros a vocação para a política e, simultaneamente, uma propensão para conspirações e rebeldias. A análise feita por Heloisa Starling desta caracterização idealizada dos moradores de Minas Gerais permite uma compreensão mais acurada da questão. A mineiridade é a ideologia da oligarquia mineira, diz ela. É uma autovisão introjetada e incorporada pelos habitantes do estado e, assim, marcando também a consciência dos membros das classes subalternas. É uma tentativa, diz a autora, “de transformar o interesse particular de uma classe social determinada no interesse coletivo de toda a sociedade, de modo a impedir que os demais setores dessa sociedade se apresentem no cenário político de forma organizada, expressando interesses e demandas próprias”. E, ao conseguir a adesão ideológica de parcelas da população, consegue escamotear de sua consciência o conflito e dissimular a dominação de classe. Heloisa Starling analisa o problema num contexto muito específico – a conspiração entre os empresários e a elite mineira contra as conquistas democráticas na década de 1960 e contra o governo de João Goulart. A idéia de mineiridade foi manipulada por aqueles conspiradores em busca da adesão da população à articulação golpista e anti-democrática. Eles não tiveram dificuldades, diz ela, “em utilizar a mineiridade como o ‘cimento’ ideológico capaz de oferecer coesão às forças políticas de ordem eminentemente ‘tradicional’ da sociedade mineira”. Este é o ponto, afinal. O Estado de Minas apelou ao brio mineiro contra a arrogância do tucanato paulista que escamoteou a pretensão do governador Aécio Neves de pelo menos disputar, através de uma consulta à militância do PSDB, a indicação do partido como candidato da oposição neoliberal à sucessão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. E, ao tocar na corda sensível da auto-imagem mineira, busca a coesão do eleitorado em torno de um projeto próprio, das elites mineiras, e tão conservador quanto o representado pela candidatura José Serra. Afinal, o Estado de Minas tem pedigree como porta-voz daquela oligarquia. O jornal começou a circular em março de 1928. Era um diário magrinho, de quatro páginas, que começou a crescer dois anos depois, quando foi comprado pelo barão da mídia Assis Chateaubriand. Naqueles anos, chegou a ter Afonso Arinos de Melo Franco – outro filho da oligarquia mineira - como diretor. Na década de 1960, envolveu-se na conspiração contra João Goulart e teve participação acentuada na propaganda conservadora contra o presidente e a democracia, tendo veiculado anúncios da rede de rádio e televisão dos golpistas e mesmo difundindo as teses conservadoras colmo se fossem notícias. Agora, em seu editorial pró-Aécio e anti-Serra, refere-se ao governador mineiro (que é neto de Tancredo Neves) como um “político de alta linhagem de Minas”, que não pode aceitar um “papel subalterno”. A linguagem empregada não podia ser mais característica das pretensões de merecimento que a elite sempre acalentou, e indica o aspecto mais conservador da mineiridade, o dos conchavos e dos acordos pelo alto. A questão que fica é: o povo mineiro partilha dessa forma de pensar? Heloisa Starling ressaltou o caráter de classe da mineiridade, mas o fato concreto é que ela foi incorporada pelo povo como sua identidade própria. Ocorre que as idéias da elite não são acatadas de uma única forma por todo o povo – essa incorporação é condicionada pelo grau de desenvolvimento da consciência de classe, pelo nível da percepção das contradições existentes entre os trabalhadores e as classes dominantes, e do engajamento a propostas mais ou menos avançadas de resolução dos conflitos sociais na luta contra os privilégios daqueles que dominam e de uma vida justa e digna para os trabalhadores. Nesse sentido, a corda que soa, aqui, é a antiga e tradicional rebeldia mineira, que pontilhou toda a história do Brasil com episódios heróicos de abnegação. Poucos anos depois do aparecimento do Estado de Minas o poeta (e mineiro) Carlos Drummond de Andrade escreveu o verso 'Minas não há mais' (no poema E agora, José?). Talvez se referisse àquela Minas que é o território mítico da mineiridade. Pode ser. Mas pode ter sido premonitório, no sentido de que um dia o povo jogaria fora a parcela conservadora e atrasada daquela identidade que lhe foi imposta e, sacudindo o jugo secular da elite interessada numa visão rósea do mundo, colocando em seu lugar a mistura de generosidade e rebeldia que demonstrou ao longo da história. Tudo indica que este dia surge no horizonte.  Postado no portal vermelho

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